Tomou posse nessa quarta-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto, a atriz Regina Duarte no cargo de Secretária Especial da Cultura. Apesar do nome pomposo, na gestão atual o posto corresponde a uma corruptela do antigo Ministério da Cultura, fundado em 1985 e hoje reduzido à subpasta do Ministério do Turismo. A cerimônia contou com a presença do Presidente da República e de seu Vice, de ministros, deputados e outras autoridades aliadas, além da claque que acompanha o presidente e lhe serve de coro, como a própria atriz identificou logo no início de seu discurso (veja a cerimônia completa aqui).

Para quem não acompanhou, a cerimônia começou com o protocolar Hino Nacional Brasileiro (escrito por Francisco Manual da Silva em 1831, que hoje costuma entumecer os mais entusiasmados nacionalistas apoiadores do governo) e terminou com um gesto de reza feito pela atriz-Secretária, bem na linha da República fundamentalista cristã que esse governo continuamente parece tentar implementar no país. O evento ainda teve um embaraçoso discurso introdutório do titular da pasta de Turismo, a quem Regina deve se submeter: Marcelo Álvaro Antônio, envolvido em denúncias de candidaturas laranjas no PSL, partido pelo qual o atual presidente se elegeu.

A postura deslumbrada da artista em seu discurso de posse dramatúrgico, como que saído de um monólogo de testes de elenco, não sinaliza resolução rápida do sem número de interrogações que pairam sobre a produção cultural brasileira desde o apagão deixado pelo antigo secretário de tendências neo-nazistas. Regina surge mais como um remendo a um governo de imagem fustigada do que como solução pragmática para um setor chave e estratégico da vida nacional, como se botassem um Band-Aid da Hello Kitty numa perna quebrada com fratura exposta.

Não à toa estavam no palco tantas mulheres, como as ministras Teresa Cristina (Agricultura) e Damares Alves (Mulher, Família e Diretos Humanos) e mesmo a primeira dama, emoldurando o capitão e o general que hoje ocupam os cargos mais altos do Executivo. Como se fosse comum nesse governo a presença delas. Também não por acaso, o discurso de Regina repetiu a narrativa forjada desde que a atriz foi convidada ao cargo, colocando-a como “namoradinha” do presidente, como sugeria a “descolada” foto dos dois juntos que circulou na imprensa semanas atrás e foi capa da revista Veja.

Regina, a viúva Porcina de Roque Santeiro e Helena de Manoel Carlos, personagem do imaginário televisivo brasileiro e feita pela rede Globo de “namoradinha” do Brasil, serve agora a um nacionalismo grosseiro que tenta fazer de Bolsonaro a metonímia de um país inteiro, para que quem ouse questioná-lo seja acusado de inimigo da própria Pátria. Estaria a antiga Rainha da Sucata (1990) cumprindo agora a profecia da TV Pirata e se tornando a Rainha da Mamata do governo da mamadeira de piroca?

Enquanto rimos, que é sempre melhor do que chorar, passa a largo a evidente falta de projeto de um governo anti-cultura para uma pasta que, antes de empregar “esquerdistas”, como se acredita no Planalto, é gerador de emprego e renda, é indústria.

É engraçado lembrar que em 2002 a atriz aparecia na propaganda política do PSDB dizendo “ter medo” de um operário assumindo a Presidência, mas hoje não parece se assustar com a ideologia de contornos fascistas propagada por seu namorado político, Jair Bolsonaro. Política esta que fomenta um caldo de cultura violento, estimulando e reproduzindo ataques constantes às instituições democráticas, incluindo jornalistas, e mesmo artistas que não coadunem com a ideologia do governo. Um exemplo é o atentado à produtora do Porta dos Fundos, motivado por seu especial de Natal.

Não se sabe que tipo de acordo a nova secretária tem com o presidente, tampouco se ele é confiável no cumprimento de qualquer acordo. Basta notar que, em seu discurso, Regina lembrou da “carta branca” dada por Bolsonaro e ainda reforçou: “não vou esquecer, não”, enquanto Bolsonaro, ao discursar no encerramento da cerimônia, lembrou-a de seu “poder de veto” – o mesmo do qual seus superministros Sergio Moro (Justiça e Segurança) e Paulo Guedes (Economia) hoje padecem. Outro indicativo da cama de gato em que Regina parece ter se metido vem da nota do jornal o Globo publicada há algumas semanas que revela que a única ordem por Bolsonaro em sua chegada à pasta foi de que não se estimule produções com temática LGBTQI+.

Resta agora acompanhar o curso dos acontecimentos – neste governo, sempre imprevisíveis – para ver se a atriz recém empossada conseguirá driblar a guerra ideológica e a paranoia institucionalizada. Essa é a única forma de fazer com que a produção cultural brasileira (que depende, como em vários outros países do mundo, do incentivo governamental) volte a funcionar após a paralisia que tomou conta do setor durante o primeiro ano de gestão Bolsonaro. Resta também saber se ela quer, ou mesmo sabe, como fazê-lo.

Entre os abacaxis que a atriz terá que resolver de pronto estão os mais de R$ 800 milhões anuais destinados ap incentivo audiovisual que ficaram inutilizados em 2019. O valor se soma ao orçamento de 2020, ainda não liberado por causa das idas e vindas na Ancine, a Agência Nacional de Cinema, e de uma política de reestruturação do setor que ainda não indicou a que veio. No meio tempo, temos milhares de projetos engavetados e profissionais ociosos . Vale lembrar que o orçamento da Ancine vem inteiramente do Condecine e não prejudica, nem “tira dinheiro”, de nenhum setor prioritário do país, como saúde ou educação. O Condecine é um imposto composto por alguns centavos pago por cada espectador de cinema no Brasil e algumas outras fontes de tributação ligadas ao mercado audiovisual. Trata-se de uma conquista do setor concretizada em 2001 para financiar produções audiovisuais brasileiras – algo semelhante às leis de incentivo que existem em países como França e Canadá. O mercado aguarda uma resposta da secretária, já que não obteve nenhuma dos últimos integrantes da pasta, nem da diretoria do órgão de cinema, atualmente comandada por um pastor evangélico e funcionando a portas fechadas.

Regina mencionou em sua posse que seu objetivo seria o de “apaziguar o setor” e indicou uma visão cultural “voltada à todos”. Falou ainda que, diante de desafios orçamentários, deverá “passar o chapéu” para que todos contribuam, sem explicar muito bem o que a metáfora representaria em termos práticos ou a que “todos” ela se refere. Seria apostar no financiamento coletivo como política de Estado? Ou esse “passar o chapéu” inclui a dívida que a atriz ainda tem com a Lei Rouanet pela prestação de contas de um espetáculo teatral financiado com incentivo público em 2018?

Cheia de boas intenções, Regina precisará ser, a partir de agora, muito mais do que a “namoradinha” das novelas brasileiras. Até porque, vamos combinar, em tempos de streaming as novelas já não têm a mesma força no país. Não que ela não tenha chance de sucesso, como o músico Gilberto Gil teve entre 2003 e 2008, quando chefiou a pasta durante o governo Lula. De alguma forma, Regina se adequa ao conceito de artista que os brasileiros eleitores de Bolsonaro têm em seu imaginário, por mais distante que pareça das demandas culturais de um país tão plural e desigual como é o Brasil de hoje. Levando em conta todos os desafios que encontrará pelo caminho, pensando bem, não é tão ruim que ela comece sua gestão pedindo ajuda aos céus.