O pedido parecera simples: escrever um manifesto sobre o dia dos pais. Não um manifesto qualquer no qual é citado cada definição para a paternidade, autoridade e patriarcalismo. Uma torrente de ideias feéricas transmitindo a verdade de todas as faces e gêneros de um antes conhecido pai de família.

Estava sentado na mesa da sala de estar, o computador aberto há duas horas, a garrafa de água não estava mais gelada, e redesenhei sentença por sentença. Evitei os pronomes masculinos, os clichês e lugares-comuns, as frases batidas – modificadas ou adaptadas. A voz para conduzir essa narração empoderada – ou seria empoleirada? – teria de ser neutra, mas carregada de emoção; firme, conquanto gentil. Cansada e ao mesmo tempo disposta. De leveza dúbia e, acima de qualquer circunstância, uma voz reconhecível para filhos desgarrados ou fãs de seus progenitores (e essa palavra estaria proibida, não faria sentido usá-la – eu falava de uma figura mais do que biológica).

Um cheiro de fumaça invade a sala quando, por um segundo, na minha cabeça eu penso: consegui. A risada abafada invade meus ouvidos. Ele novamente. Sim, ele. Zombeteiro. Com seu humor único. Aquele laconismo cínico. Típico de um sujeito cujo ofício é a escrita desde sempre. Ele nem precisa se gabar de escrever sobre Proust e “Em busca do tempo perdido” aos 25 anos de idade. Eu, aos 27, li o primeiro volume e não consegui exprimir mais do que 140 palavras sobre.

“… da queda das minhas orelhas não ouvi nada…”, eu não queria ouvi-lo.

Ele reconhece a sentença daquele seu livro maldito – maravilhosamente maldito. Sua voz estava na minha cabeça, perturbando cada sinapse. “eu, eu estou aqui. Logo, sou obrigado a acrescentar ainda o seguinte. Eis-me aqui, eu que estou aqui, que não posso falar, não posso pensar, e que devo falar, logo, pensar talvez um pouco, não posso fazê-lo somente em relação a mim que estou aqui, a aqui onde estou, mas posso um pouco, suficientemente, não sei como…”, ele disse. Ou talvez não disse, e lembrei o que ele escreveu em algum lugar e isso palpitou em mim.

“queria perguntar-lhe, mas tenho vergonha de tomar-me como um tolo.” – eu sabia: uma questão teria de ser formulada para não perder esse fanfarrão dublinense, que do alto da sua extensa bibliografia poderia falar sobre amor e merda em uma mesma novela e soar como o romance romântico em seu estado mais puro. Escrever e dirigir peças era quase um passatempo. Filho da puta. Me cagou na cabeça. Isso teria saído de um conto seu: “hoje conversava com Fel e caguei-lhe na cabeça feito um pombo parisiense.”

“Não importa. Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor.”

“Eu fracassei muito bem. Quem escreve, quem se atreve a escrever, será sempre um fracasso.”

“Je suis comme ça. Ou j’oublie tout de suite ou je n’oublie jamais.”

“Não falo francês, seu irlandês metido a besta.”

Eu não podia esperar perto de uma árvore a inspiração chegar. Não com ele zunindo nos meus ouvidos como uma mosca intrometida dentro de uma biblioteca. Um momento! Não há uma árvore aqui. Ele era a minha consciência? Eu não posso falar. Que atrevido. Eu, é claro. Meu amigo imaginário, minha voz interior, ser justamente Sam – ou Sammy. A minha capacidade para alegorias é pífia.

Não espero um Rosebud, tampouco um Godot.

Sam não é uma voz interior. É um Pícaro.

Como muito do que tem acontecido comigo: espero. Penso em partir. Deveria partir. Eu parto sem me mover. Bato nas teclas esperando palavras mágicas se formarem à frente. Não bato nas teclas, acaricio. O g salta do teclado, depois o e. Está todo engordurado. Um manifesto sobre pais, sobre inspiração; sobre ídolos. Sobre figuras e papéis.

O celular vibra: “Manifesto cancelado. Bom final de semana.”

Talvez eu seja Didi, talvez eu seja Gogo. Continuo a esperar. O quê? Não faço a mínima ideia. Eu não tenho a menor ideia. Espero desde sempre, me movendo sem me mover. Como todos. Como Sam esperou um dia. Ele se levanta ao mesmo tempo em que ajeita os óculos. Seu cabelo grisalho em riste, a testa enrugada, o meio sorriso. Provavelmente ele teria dito – ou eu imaginado – que deveria cantar. Eu estava na merda já.

O que se espera de mim?

“Ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar.”

Os 30 anos, a glória, a desgraça, a cólera, o sono, o amor, o torpor; as más, as boas, a iluminação. O manifesto, a filha. Uma guerra. O frenesi.

Continuo a esperar todos (vocês).

E continuo. A esperar.