Dois dias atrás, eu estava sentada no chão do hostel contemplando minha mochila quebrada. Por qualquer motivo que fosse, queria escrever minha próxima coluna sobre a mochila quebrada. Me parecia poético, prosaico, o que quer que seja, a matéria de que ensaios são feitos, quem sabe? Se pode sobre feira de exposições no meio-oeste americano, por que não uma mochila quebrada?

Ao mesmo tempo queria falar sobre como ao visitar só Paris, que foi toda derrubada e reconstruída por Napoleão no século XVIII, esquecemos que a Franca é um país fundamentalmente medieval. Sobre como e possível derrubar e mascarar toda uma historia e deixar dela apenas um museu e um bairro de ruazinhas enoveladas porque ali morava judeus então não precisa reconstruir não.

Tenho certeza que os dois assuntos estão conectados, eu só ainda não sei como.

Talvez seja uma questão de memória. Talvez eu esteja querendo me convencer que os sintomas apresentados pela minha mochila (um rasgo na parte de cima, a fivela da cintura quebrada, uma tendencia determinada a pender para a direita) não estão relacionados e ela certamente vai sobreviver até o fim da viagem e não precisara ser abandonada por aí. Infelizmente, vi House demais para isso e sei que essa última teimosia em se inclinar para direita, talvez seja o início do fim.

Não é tanto pelo preço de uma mochila nova que não quero abandonar a minha, e porque ela é parte da minha história. Comprei essa mochila 6 anos atrás, quando pela primeira vez viajei sem meus pais, dormi em hostels e andei em ônibus bolivianos cheios de cabras (sim, cabras). Ela andou comigo 4 dias ate Machu Picchu! (Tá, não, não andou, ficou no hostel, mas metaforicamente andou!)

Abandonar essa mochila seria como abandonar uma pedra fundamental da pessoa que hoje está aqui escrevendo esta coluna. Por outro lado, talvez ela preferisse morrer em Sarajevo do que em São Paulo.

Comecei essa viagem pela França, Paris por puro amor e uma exposição do Van Gogh e então para o sul, porque estou perseguindo o verão e encasquetei sem motivo algum com conseguir chegar em Malta. Saí de Paris para Toulouse e, ao entrar em uma das igrejas da cidade, me surpreendi com o quanto ela nem chegava a ser gótica, era de um período anterior, da idade média que ainda não caminhava para o Renascimento. Minha parte preferida dos anos de história da arte e daquele curso aleatório de história francesa que fiz uma vez é identificar períodos arquitetônicos em igrejas por aí. Especificamente igrejas. Não me perguntem o por quê.

Quando entrei naquela igreja, os arcos, as abobadas, os afrescos na parede, imediatamente me levaram de volta a livros, imagens e aquilo que meu cérebro construiu como sendo a Idade Média. Quase podia imaginar que a Morte apareceria para jogar xadrez comigo, porque como todo mundo sabe, naquela época isso acontecia com frequência.

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Em algumas cidades, você pode ver as camadas de história. Não em Paris, em Paris tudo foi soterrado, reconstruído, refeito. Parece cruel, mas se não fosse assim, não teríamos Baudelaire, não teríamos Balzac, não teríamos a literatura da cidade que tão friamente enterrava sua historia. Talvez seja verdade que é preciso seguir o bonde da história e ter menos apego a igrejinhas medievais.

Eu, porém, tenho muito apego a igrejas medievais e essa mochila acidentada e por isso partimos em direção a Carcassonne, uma cidade que, como diria o recepcionista adorável do meu atual hostel em Marseille, “tem vinte habitantes!”. Vinte habitantes, mas uma bela cidade murada, com castelo e tudo. Devo ter lido Rei Arthur demais na infância, ou posso pôr a culpa em Game of Thrones, não sei. Sei que decidi pegar um trem de Toulouse até lá de manhã, passar algumas horas na cidade e então seguir para Marseille. As informações que a internet me deu sobre lockers eram vagas, com certeza não existia um na estação, mas parecia que se podia deixar a mala e um hotel que o Wikitravel afirmava ter sido “fechado ou realocado”.

Uma pessoa mais sensata, uma pessoa com consciência da dor no ombro que causa uma mochila pendendo para a direita, teria desistido, ou pelo menos feito uma pesquisa mais aprofundada. Eu simplesmente fui. Cheguei na estação e decidi, com meu melhor francês, perguntar na informação se existia algum hotel onde eu pudesse deixara a mala. “É… bom… é… não”, me diz o senhor da informação. Vou tentar mesmo assim, qual o pior que pode acontecer? Eu carregar essa mochila capenga por uma meia hora e acabar em um trem mais cedo para Marseille? Já vivi coisas piores.

Saio bravamente da estação e logo vejo uma placa indicando o tal hotel. Ele existe! Eu só não sei onde é. Vou seguindo a rua que tomei, seguindo, seguindo, passo por uma praça, ando mais um pouco. Às vezes sento em bancos para aliviar a dor nos ombros e tentar achar uma internet. Vou seguindo tanto que acaba a cidade. Ops…

No fim da cidade tem um mapa, decido olhar, esperando que o espírito de Asterix baixe em mim e eu possa me achar nessas malditas ruazinhas medievais. Suspeito que Asterix nem vivia nessa parte da França, mas isso não me importa. Vejo no mapa uma tal rua de La Libertè, alguma das informações contraditórias que li na internet mencionava, se não me engano, Rue de La Libertè 81. Decido tentar, por que não? O que tenho a perder agora, exceto o movimento do braço direito que já começa a apresentar sinais de risco? Sinto uma certa rigidez no pescoço também, mas com certeza sintomas não relacionados. Com certeza. Lá vamos nós, eu e mochila, bravamente em busca do tal hotel.

Misteriosamente, o caminho de volta pareceu mais curto que a caminhada sem rumo da ida. Como é bom ter um rumo. Enfim chego ao numero 81 da Rue de La Libertè e sim! O hotel existe! E siiiim! Ele guarda minha mochila por apenas 3 euros. Quase quero voltar na estação e fazer o homem antipático comer esses 3 euros, mas só deixo a mochila e vou andando. “Ela tá meio quebrada, mademoiselle”, diz o senhor (também antipático) que a guarda. Eu sei meu senhor, mas o que você espera que eu faça?

Enquanto ando em direção ao castelo penso nas minhas opções, posso comprar outra mochila, posso usar essa até ficar insustentável, posso simplesmente arregar e comprar uma mala de rodinhas. Mas então lembro das infinitas escadas em estações de metrô e aquela inevitável dor no antebraço causada por puxar malas de rodinhas. Não existe forma indolor de ter bagagem, indolor só viajar pelada. Mas o desconforto das rodinhas parece consideravelmente menor.

Também penso por quê estou ali, por que pegar dois trens no mesmo dia, sem nem saber se ia dar certo, por que carregar essa mochila infernalmente pesada em volta de uma micro cidade? Só por um castelo?  Deviam ter me proibido de ler As Brumas de Avalon enquanto era tempo.

O castelo é certamente bonito, a igreja é provavelmente mais bonita que qualquer outra que já tenha visto. É tão bonita que me sento só para ficar alguns minutos olhando um vitral. Quando me sento, três homens começam a cantar. São russos, um coro à capela de canções religiosas e eu queria poder descrever em a palavras a beleza das vozes deles.

Não posso.

Estou em uma igreja católica francesa provavelmente construída no século XII, ouvindo três russos provavelmente ortodoxos cantarem em alemão. Não faz sentido, mas é tão terrivelmente lindo que doo 50 centavos, mesmo sabendo que isso me compraria um croissant.

Beleza não precisa fazer sentido. Às vezes penso por que, já que estava soterrando tanta coisa, Napoleão decidiu deixar Notre Dame ali, bem ali, no meio dos boulevares largos e da arquitetura imperial. Porque seria heresia é a resposta provável, mas para mim é porque era bela demais. E beleza tem licença para não fazer sentido. Para te fazer tomar dois trens, andar duas vezes uma cidade inteira carregando uma mochila de 3 toneladas e achar que valeu a pena.

Há muita beleza no mundo. Mas talvez eu compre uma mala de rodinhas.