Diante do terremoto que arrasou o Haiti, Dominique não vê outra alternativa a não ser converter-se em mais um dos imigrantes que, deixando mulher e filho para trás, se aventura em busca de trabalho no Brasil. Mas ao entrar no país, um incidente o obriga a mudar seus planos radicalmente, lançando-o em uma espiral de preconceito e xenofobia, cujo cenário é o universo brutal das linhas de corte dos frigoríficos no Oeste Catarinense. Brigite, por sua vez, uma menina de treze anos, transexual e aspirante a cineasta, vive uma conturbada relação com a mãe e com aqueles que fazem parte do universo que habita.
Em seu segundo romance, sucessor do premiado Modos Inacabados de Morrer, André Timm apresenta uma narrativa comovente em que violência e afeto dão as mãos em busca de redenção. Uma história que exalta os deslocados, que expõe o desconforto de não se sentir pertencente a um lugar, uma língua, um corpo. O romance será lançado pela Editora Taverna e está em pré-venda. A seguir, leia um trecho inédito do livro.
Foi uma coisa que simplesmente aconteceu, o homem é arrancado de sua pele e depois o corpo vai junto.
Don DeLillo
1
O crepúsculo emoldurava a van enferrujada. A van enferrujada emoldurava a janela suja. A janela suja emoldurava o perfil de Dominique Baptiste Monfiston, e o perfil de Dominique Baptiste Monfiston encapsulava seu próprio cérebro, chispando, uma assembleia de milhares de neurônios confusos em plena discussão, debatendo. Diálogos sinápticos. Significado e significante em forma de impulsos elétricos. Cem trilhões de conexões celulares em constante troca de informações para responder a uma única e crucial pergunta: sobreviverei?
A jornada em direção ao Brasil se dava sob os serviços de um coiote, designação dada a quem faz imigrantes cruzarem fronteiras ilegalmente mediante o pagamento de grandes somas de dinheiro. Assim que Dominique escutou o homem pedir que fechassem as cortinas, a van lhe pareceu ainda mais claustrofóbica. Talvez fosse a tensão. Talvez fosse a mistura dos cheiros de urina, suor, sangue e demais eflúvios que o corpo humano expulsa depois de duas semanas sem banho, com a cortisona no pico a maior parte do tempo, sem acesso a banheiros decentes, sempre correndo, arfando, se esgueirando e escapando por pouco. Quando Dominique puxou o pedaço de feltro preto puído sobre a janela, foi como o obturador de uma máquina fotográfica se fechando para congelar um instante no tempo, registrar para a posteridade a perigosa travessia de homens que não tiveram outra escolha a não ser deixarem de ser.
O som do motor, abafado por sucessivas camadas de lata, plástico e imigrantes, era como ferro mastigando ferro. Quando a van foi gradualmente diminuindo a velocidade, aos trancos, Dominique sentiu o coração em leve descompasso, como se o órgão quisesse prosseguir, ainda que o veículo estivesse parando. Todos sabiam que aquele era um dos pontos mais tensos do trajeto. O coiote, um equatoriano de pequenos olhos infantis e malignos e cujo corpo era uma massa compacta de carne, ordenou que fizessem silêncio e que, sob hipótese alguma, reagissem a alguma provocação dos policiais bolivianos.
Dominique percebeu que um deles fazia sinal para que o coiote abaixasse o vidro. O som da manivela girando lembrava o guincho de um rato. Depois de alguns minutos de diálogo, o coiote abriu a porta para que o policial pudesse ver os haitianos. Recepcionado pela fedentina palpitando espessa no ar, ele virou o rosto e espalmou a mão à frente do nariz antes de se voltar novamente para frente, se dirigindo aos tripulantes. A mão agora repousava sobre a culatra da arma na cintura.
“Buenos días, señores. Por favor, pasaportes en la mano”. A voz, nasalada e aguda demais, não parecia combinar com o homem corpulento que media, seguramente, quase dois metros de altura. A cada frase, ele dava um sorriso exagerado que deixava à vista o aparelho nos dentes, mas que era também a deixa para que o coiote pudesse ir fazendo a tradução. “Cada uno de ustedes desembarque del coche y se dirija al interior del puesto. Este es un procedimiento de rutina, por lo que no hay motivos para preocuparse. Sólo queremos garantizar que todos ustedes estén en condiciones legales de proseguir en su viaje hacia Brasil”.
Como estava mais próximo da porta, Dominique foi o primeiro a se levantar. Vestia uma camiseta surrada da seleção brasileira de noventa e quatro. Quando entregou o passaporte, sorriu para o policial, que não retribuiu o gesto. Dominique baixou a cabeça e prosseguiu desembarcando, seguido por todos os outros.
O sol, agora mais alto, se enfiava pelas frestas da persiana dentro do posto policial ao mesmo tempo em que o ventilador de ferro, com suas pás, cortava os raios, criando uma espécie de efeito estroboscópico em plena luz do dia. O policial fez sinal para que Dominique o acompanhasse até outra sala. Confuso, ele olhou para o coiote em busca de aprovação ou orientação, ao passo que este apenas acenou com a cabeça para frente, indicando que obedecesse.
“Mira. Usted no me entiende, pero aquí vamos a hablar la lengua universal de las señales”. Deu um largo sorriso que expôs todo o aparelho. Dominique sorriu de volta, mas freou a ação na metade quando o policial acariciou outra vez a culatra da arma. “Usted tiene que llegar a Brasil. Yo tengo una familia para sostener. ¿Por qué no nos ayudamos?”, perguntou enquanto esfregava indicador e polegar. Dominique pareceu confuso.
“Mira”, disse, com o bolo de passaportes na mão. A cada primeira página que checava, ia jogando cada um dos documentos para trás, como num baralho de cartas, até encontrar o de Dominique, no qual se demorou, olhando-o com atenção. “Aquí no vamos a hacerle daño. No te preocupa. Tranquilo. Por el contrario, le doy incluso opciones. Usted tiene la opción de volver a su país. Simples. Pero si quieres seguir para Brasil, necessito avisar a mis colegas en la carretera que está todo bien. Y eso, infelices, cuesta dinero”, concluiu, esfregando outra vez polegar e indicador, mas agora sem sorrir.
Dominique olhou para baixo. Não entendia os detalhes, mas compreendia o que estava em jogo. Mexeu na pochete, tomando o cuidado de não abrir demais o zíper. Da forma mais discreta que pôde, tirou uma nota de cinquenta dólares, que entregou ao policial. O homem, agora sim, deu outro sorriso. “Vamos, mi amigo. Yo sé que usted puede hacer mejor que eso”. Dominique puxou mais uma nota de cinquenta da pochete. O boliviano pediu mais, por mais duas vezes, dando-se por satisfeito quando já acumulava duzentos dólares. “Listo. Muy bien. Considere esto como un seguro. Voy a hablar con sus amigos también y después ustedes pueden viajar tranquilos. ¿No es mejor así?”, indagou feliz.
Na van, Dominique e os demais homens tentaram questionar o coiote sob o argumento de que, tecnicamente, o preço que cada um deles havia pago a ele deveria cobrir as propinas pedidas ao longo da viagem. Era a história que haviam lhes contado. O coiote apertou os olhos e sugeriu que eles poderiam se virar por conta própria se não estivessem satisfeitos.
Sem mais perguntas, todos embarcaram, e a van seguiu rumo à fronteira com o Brasil.
2
O coiote jogou uma a uma as mochilas contra o último pedaço de chão poeirento da Bolívia, levantando uma nuvem que Dominique e seus companheiros tentavam afastar abanando as mãos. O terroso do ar contrastava com o verde da vegetação que se avolumava à frente deles.
Já dentro da van, o coiote, através de parcas instruções, orientou que bastava que seguissem a trilha e estariam no Brasil. Oito quilômetros. Segundo o homem, não havia como se perder, bastava se manter no caminho. Antes mesmo de terminar a frase, ele pisou com tamanho ímpeto no acelerador que fez com que os pneus traseiros cuspissem a última e derradeira nuvem de poeira, como que selando o término daquela transação que, embora se desse pela ilegalidade, caso possuísse um contrato, seria constituído quase que inteiramente de letras miúdas.
Para homens que estiveram habituados a viver numa cidade virada em escombros, à mercê da fome, dos saqueadores e dos estupradores, com esgotos a céu aberto e topografias inteiras formadas por lixo, dividindo cada metro quadrado com ratos e outros animais igualmente famintos, atravessar uma trilha na mata era o equivalente a dar um passeio no parque.
A terra prometida, enfim, estava mais próxima do que nunca, o que deu esperança renovada a Dominique e aos demais. Apenas oito mil metros os separavam do plano mais óbvio e, no entanto, plenamente funcional, ao menos em teoria: arrumar emprego no Brasil e enviar o máximo de dinheiro possível para aqueles que haviam deixado para trás no Haiti.
Ainda que embrenhados na vegetação, a trilha, de fato, era fácil. Aos seus pés, o mato repisado indicava o quanto a rota vinha sendo usada. Em pouco menos de hora e meia, estavam do outro lado, deixando a selva para trás e sendo recepcionados pela boca da ponte que fazia a transição de Cobija para Brasiléia. Um modesto pórtico, com pilastras em tijolo e uma espécie de alpendre em madeira, estampava os dizeres “Vuelva pronto, Cobija te espera”.
Nenhum deles, no entanto, pretendia voltar. Antes de prosseguir, Dominique deu uma última olhada para trás, marcando no tempo o fim de uma jornada e o início de outra. Ainda que houvesse se passado apenas duas semanas desde que haviam deixado Porto Príncipe, a sensação era de que a antiga vida já parecia pertencer a um passado bem mais distante. Com os olhos agora cravados do outro lado da ponte, Dominique operou o milagre de caminhar sobre as águas turvas do rio Acre. Ao colocar o primeiro pé em solo brasileiro, beijou a camisa e prosseguiu.
3
Como é comum em cidades fronteiriças, apesar da expectativa que todo viajante tem de encontrar um cenário completamente distinto assim que realiza a travessia, Brasiléia, no fim, não parecia assim tão diferente de Cobija. Cada uma tinha um pouco da outra, exceto pelo fato de que agora era possível ver imigrantes em qualquer lugar para o qual se olhasse. Alguns conversavam exaltados em pequenas rodas, enquanto outros se encolhiam, cabisbaixos, mexendo em modelos de aparelhos celulares que ainda tinham teclados de verdade.
Na chegada, não haviam encontrado nenhum tipo de policiamento. Logo após uma breve caminhada de reconhecimento, Dominique e o restante do grupo, em busca de informações, se dirigiram a alguns homens que pareciam à vontade, como se já estivessem por ali há mais tempo. Estes explicaram então que a primeira coisa que deveriam fazer era registrar a entrada no país para que pudessem receber um CPF. Apontaram o lugar, facilmente reconhecível pela fila de homens negros que serpenteava o que parecia ser uma casa residencial. A fila dava a volta no quarteirão.
O local era uma sede da polícia, improvisado devido ao sempre crescente fluxo de pessoas que chegava ao Brasil através de Brasiléia. Depois de cerca de duas horas na fila, a senha de Dominique foi chamada. A primeira agente era responsável pelo registro de entrada dos imigrantes no país. O rosto craquelado harmonizava com as generosas bolsas logo abaixo dos olhos. Em um crioulo haitiano mecânico, mandou que ele preenchesse uma ficha. Muito provavelmente sabia apenas as expressões básicas e necessárias para o tanto de interação que exigia aquele momento do processo.
Dominique escancarou um sorriso, puxou a camisa da seleção e girou levemente o torso para mostrar o número sete antes de voltar-se novamente para a mulher e tentar dizer que era fã de Bebeto. A agente fechou ainda mais o rosto e se limitou a repetir, agora num tom um pouco mais alterado, que ele preenchesse a ficha. Dominique recolheu o sorriso e acatou a ordem. Com o papel em mãos outra vez, depois de uma rápida passada de olhos, a mulher carimbou a ficha com uma força desnecessária. Sem olhar para Dominique, disse que o CPF estaria pronto em até três dias.
A casa funcionava como uma linha de montagem. Os imigrantes registravam sua entrada e encaminhavam o pedido do CPF e da carteira de trabalho. Depois, eram direcionados a uma sala, onde recebiam vacinas contra febre amarela, hepatite, tétano e difteria. Finalmente, eram orientados sobre sua permanência num dormitório em que era possível ficar enquanto aguardavam por seus documentos e que ficava ali mesmo, próximo – um enorme pavilhão de eventos que a prefeitura havia alugado para essa finalidade. Visto que o próximo agente parecia mais receptivo, Dominique puxou de dentro da mochila um papel e, numa mistura de portunhol e crioulo, tentou explicar que vinha com emprego garantido e que precisava chegar ao Paraná. O papel trazia um e-mail impresso que oficializava a intenção de contratá-lo como motorista. Com alguma dificuldade, o homem entendeu e informou que, antes de prosseguir, era preciso que Dominique esperasse pelos documentos, para só então tomar um ônibus em uma viagem de dias, com trajeto de quase três mil quilômetros para praticamente o outro lado do país. Dominique entendeu. O pouco dinheiro que havia sobrado, segundo o homem, era suficiente para a passagem. No fim, os imigrantes recebiam uma garrafa d’água e um sanduíche, o qual Dominique devorou rapidamente. Havia comido pela última vez há dois dias.
Palco de feiras agrícolas, lugar onde, geralmente, eram expostos bois reprodutores e vacas leiteiras da melhor linhagem, o pavilhão acomodava agora centenas de imigrantes e um sem fim de colchões espalhados pelo chão, quando não apenas caixas de papelão abertas fazendo as vezes de cama. Dominique procurou um lugar onde conseguisse se acomodar e fez de travesseiro sua mochila, a única coisa que havia trazido consigo. Apesar do sol a pino e do céu de zinco acima dele, por ser todo aberto, o pavilhão permitia que o ar circulasse e, com um pouco de sorte, era possível até sentir uma brisa às vezes. A mistura de estresse e cansaço dos últimos dias, somada ao alívio de as coisas parecerem estar funcionando, fez com que Dominique pegasse no sono rapidamente.
De sobressalto, Dominique acorda com estouros pipocando acima de sua cabeça, como se estivessem apedrejando o telhado. No ínterim entre o sono pesado e o acordar brusco, pensou se tratar de uma chuva de granizo, mas percebeu que fazia mais sol do que antes. Agora, mais desperto, viu ao redor diversos imigrantes alvoroçados dentro do pavilhão. Muitos corriam, e outros procuravam objetos que pudessem usar para se defender ou atacar: vassouras, cadeiras de ferro dobráveis, cercas de contenção. Do lado de fora, um grande grupo de brasileiros ameaçava invadir o dormitório. Alguns já haviam entrado e conseguido pegar roupas e pertences, os quais tinham jogado em uma enorme fogueira acesa bem em frente ao local. Uma mulher de olhos vidrados e boca retorcida gritava palavras de ordem, exaltando o Brasil, para a seguir alterná-las com outras, dizendo que “a raça de vocês não vai tomar nossos empregos, não venham pra cá nos encher de doenças”. Logo um grupo de cinco homens entrou com porretes improvisados, quebrando tudo que era possível. Vinham rapidamente e na direção de Dominique, que não viu outra alternativa a não ser correr junto de outros haitianos que passavam velozes por ele.
Ao fim da confusão, depois de enormes prejuízos para os imigrantes, alguns dos manifestantes foram detidos pela polícia, que acabou conseguindo controlar o tumulto do lado de fora. Dominique, entretanto, ao voltar para onde estava antes, não encontrou sua mochila. Procurou ao redor, circulou por todo o pavilhão olhando atentamente em todo lugar, mas sem sucesso. Ou havia sido roubada ou, pior, queimada.
Agora tinha somente as roupas do corpo e estava sem dinheiro para a passagem. Além disso, precisaria encontrar uma maneira de acessar seu e-mail para ter novamente as informações da empresa. Um contratempo que poderia lhe custar dias ou semanas até que fosse possível entrar em contato e ainda obter o dinheiro para se deslocar até lá. Abalado, mirou o chão e marejou os olhos. Não muito depois, cruzou o olhar com o de dois brasileiros que o observavam com uma indelével expressão de satisfação.
4
Do lado de dentro do banheiro, Brigite escovava os dentes. Impunha forma e cadência ao movimento, alternando escovadas vigorosas, primeiro longitudinais, depois latitudinais. Não passava para o estágio seguinte enquanto as cerdas não saíssem tingidas de vermelho. Uma escova de cerdas macias. Depois era vez do palato, que devia ser coberto em toda a extensão que a escova alcançasse. Quando a espuma rareava, recarregava de creme dental, trazendo nova munição. Finalmente, era a vez da língua, lixada à exaustão até que ganhasse uma coloração vermelho-vibrante. Bochechos, gargarejos. Outra vez. E fim.
Do lado de fora, Milani subia o zíper da calça.
Contra todas as probabilidades, Brigite gostava daquele banheiro. Era uma espécie de oásis. Não só porque indicava o fim de um momento repulsivo, mas também porque era o banheiro mais limpo do mundo inteiro – isso no lugar mais sujo do mundo inteiro, o desmanche com fachada de ferro velho de Milani. O cômodo era de uma brancura aterradora. Toda a louça brilhava e, em qualquer momento do dia, cheirava a desinfetante. Quase não era possível acreditar que lugares tão diferentes existissem na mesma dimensão e, o mais impressionante, separados apenas por uma porta sanfonada de plástico.
Brigite tinha treze anos. Sua mãe, quarenta e cinco, mas com aparência de sessenta, com olhos fundos e sujos como poças d’água em lugares ermos e com uma incrível habilidade de transmutar em pedra o dinheiro da filha. Uma alquimista do infortúnio.
A porta sanfonada se espremeu, abrindo novamente o portal para que Brigite voltasse ao mundo de Milani, que a esperava com cinquenta reais na mão e ávido por um último beijo. A barba por fazer, grisalha, arranhava o rosto de Brigite. Ao mesmo tempo em que enfiou a língua viscosa dentro da pequena boca, operando rotações violentas e úmidas, colocou, bem devagar, os cinquenta reais no bolso de trás do short dela.
Enquanto Brigite partia, nauseada, Milani a contemplava. No pequeno corpo-galeria, a pele branca exibia hematomas aqui e ali, resultado do contato bruto entre um homem de sessenta e dois anos, grande e robusto, e uma menina de treze subjugada pela necessidade. Não fosse estar viva, poderia se dizer que as manchas eram livores violáceos. Uma pintura com uma paleta muito semelhante às do cenário que a circundava, constituído de centenas de veículos distribuídos a perder de vista e em decomposição. Uma espécie de ode ao tétano cuja tela era o corpo daquela menina, com aqueles hematomas, naquele lugar imenso, metálico e enferrujado.
A mãe, pele-osso-e-olheiras, desgrudou-se da parede na qual se escorava, como se tivesse ventosas, e perscrutou as mãos da filha em busca do dinheiro. Brigite deu apenas os dez reais que tinha no bolso da frente do short e pediu que a mãe andasse rápido para que chegassem logo em casa.
Ela precisava escovar os dentes mais uma vez.
5
Dominique tombou de joelhos e chorou. Um pouco por raiva, um pouco por desespero. As enormes mãos melânicas arrastaram as lágrimas, abrindo rastros molhados no rosto empoeirado depois da confusão. Mãos encascurradas, calejadas pelo embate da pele com as peças, com o óleo, com a graxa. As mesmas mãos que levantaram pedaços de paredes, vigas, ferro retorcido fumegante. Mãos incansáveis, que buscaram um último suspiro nos escombros ou a ancestralidade soterrada por aquilo que uma vez foram casas, escritórios, escolas. As mesmas mãos que salvaram uma esposa, mas que não foram capazes de salvar uma filha. Tombar ali era uma espécie de abalo sísmico íntimo, uma desconfortável sensação de experimentar de novo a iminência da ruína.
Sem a carta da empresa, Dominique tinha um grave problema em mãos. Cada dia perdido aqui era um dia a mais, no futuro próximo, que a família demoraria para receber o dinheiro que ele lhes enviaria. De joelhos, com fome, exausto e fedendo, se pegou pensando que os brasileiros não pareciam tão calorosos e receptivos quanto o senso comum fazia acreditar. E enquanto conjecturava sobre a recepção pouco amistosa, viu um pequeno grupo de haitianos se aglomerando em torno de alguém na entrada do alojamento.
Um brasileiro se apresentava como representante de um grande frigorífico em Santa Catarina e um haitiano traduzia o diálogo. Basicamente, estava em busca de homens aptos a atuarem na linha de corte da empresa. Para tanto, o interessado deveria ser saudável, ter no máximo quarenta anos, não ter medo de trabalho duro e já ter a documentação em dia ou encaminhada. A contrapartida: um salário justo, segundo o homem, hospedagem e transporte de Brasiléia até Chapecó, cidade em que estava sediada a empresa. Rapidamente o grupo diminuiu com a saída de alguns homens que, aparentemente, não se encaixavam no critério da idade. Dominique disse ao tradutor que atendia a todos os requisitos e que estava apenas esperando pelos documentos. O homem disse não haver problema, pois poderia adiantar o processo de emissão se julgasse Dominique adequado para o trabalho.
Depois de olhá-los de cima a baixo, pediu que todos que se consideravam aptos e tinham interesse permanecessem. Os demais deveriam sair. Eram vários haitianos perfilados. Posicionando-se à frente de cada um deles, o homem foi pedindo que abrissem a boca, um de cada vez. Conforme o faziam, tinham os dentes inspecionados. Em alguns era possível ver os olhos marejados. Em outros, as mãos se fechando com força. Nenhum deles, entretanto, se encontrava em condições de recusar o que lhes era pedido.
Um dos imigrantes perguntou ao tradutor a razão daquilo. O intérprete, numa cumplicidade trocada através de olhares que só entre eles seria possível compreender, respondeu que muitos haitianos haviam sido admitidos com problemas nos dentes, ocasionando grandes prejuízos para o frigorífico. Por essa razão, a verificação tinha se tornado obrigatória.
Na vez de Dominique, o homem pediu que abrisse mais a boca. Abaixou-se um pouco, jogou a cabeça para o lado, de modo a ter uma melhor visualização e, com o dedo indicador em riste, empurrou a arcada dentária superior de Dominique para cima, fazendo com que ele movesse a cabeça para trás. Satisfeito, o homem o aprovou, limpou a ponta do dedo na própria camisa e pediu que o tradutor explicasse tudo aos selecionados.
Santa Catarina ou Paraná? Motorista ou linha de corte? O garantido ou o duvidoso? Todas perguntas que Dominique se fez assim que o homem o aprovou. Pelos relatos de outros imigrantes, sabia da fama dos frigoríficos. Entretanto, como seria capaz de obter o dinheiro da passagem até o Paraná? Quanto tempo levaria? E se conseguisse, que garantia teria de a vaga ainda estar disponível? A única convicção, naquele momento, era a de que precisava decidir rápido.
6
Dominique deixou tombar um metro e oitenta e cinco de corpo sobre um dos assentos esburacados do micro-ônibus amarelo que atravessava dias áridos e noites escaldantes de céu estrelado e descampados pardacentos por estradas inexistentes. Ferrugem e terra ocre de plantações queimadas e poeira entrando pelo nariz e pelos olhos e pela garganta e pelas janelas, que precisavam estar abertas intermitentemente para que não morressem todos de calor ali dentro. A cada solavanco as molas chegavam mais perto de romper a já esgarçada espuma, única e frágil barreira entre o metal e Dominique. E a cada solavanco ele também ouvia ainda o espocar de engrenagens, como que o anúncio de algo que está para romper, estourar ou se entregar. Em sua oficina mecânica no Haiti, esse era um dos passatempos prediletos entre ele e sua filha, auscultar carros, especialmente os mais rodados. Dominique costumava acertar com uma precisão espantosa, e a menina começava a pegar o jeito. Embora nunca houvessem verbalizado, havia uma espécie de acordo tácito, uma certa cumplicidade sobre o fato de que provavelmente aquela seria uma herança de pai para filha, um negócio de família. A menina havia inclusive pedido à mãe que costurasse um macacão à semelhança do que o pai usava, um azul marinho que já começava a se tornar salpicado de preto em função da lida com todo o tipo de sujeira que só os carros velhos têm. E no Haiti que Dominique precisou deixar para trás, cada vez mais havia apenas carros velhos. Assim, diagnosticando o velho ônibus através de sua sinfonia em movimento, Dominique foi o único que não foi acordado de sobressalto, no meio da noite e do nada, pelo estouro que pôs o veículo em repouso à força. “Haitianos de merda, azarados” foi a primeira reação do motorista ao perceber o que havia acontecido, sendo compreendido apenas pelo intérprete. O som do pistão hidráulico que abriu a porta do ônibus acabou por acordar os poucos que ainda conseguiam a proeza de dormir. De dentro, Dominique vê o homem esbravejar chutando o chão, o que faz levantar uma nuvem castanha que só se mostra perceptível quando cruza os feixes de luz dos faróis. Dominique se sente na obrigação de ajudar. Anda levemente arqueado para que sua cabeça não encoste no teto e pede que o intérprete avise o motorista que ele pode ajudar, pois tem prática. O homem olha desconfiado, coça a cabeça e diz que ok, que, na verdade, é o mínimo que ele poderia fazer, já que a culpa é deles por serem tão azarados e por estarem num país que não é o deles, todas palavras que o intérprete opta por não traduzir. O amarelo da camiseta surrada da seleção de noventa e quatro se mistura ao amarelo do ônibus, assim como a pele negra reluzente de Dominique contra o negro da noite. As enormes mãos melânicas e calejadas rodando o pneu contra o chão pardacento levantam um véu de poeira que vai na direção do motorista, que assiste a tudo de braços cruzados, enquanto Dominique desenrosca os parafusos com destreza, trocando o pneu furado rapidamente e sem qualquer contratempo.
Logo o sol pinta todo o resto de amarelo. A já desperta tripulação, assim como Dominique, percebe a ação da gravidade puxando seus corpos para a esquerda quando o ônibus sai da rodovia e toma um acesso à direita, em direção ao coração de uma cidade situada em algum ponto dos três mil oitocentos e cinquenta e um quilômetros entre Brasiléia e Chapecó. O motorista anuncia uma parada de uma hora para o almoço, e todos se olham sem entender, até que o intérprete traduza.
“Buffet a quilo e espeto corrido” estampam a fachada de um pequeno restaurante que, a julgar pelo tamanho da cidade, deve ser um dos poucos. Motorista e intérprete entram primeiro, seguidos pelos demais, que se olham desconfiados. Ao mesmo tempo em que começam a contar os trocados, enchem o intérprete de perguntas, indagando especialmente em relação a preços, uma vez que ainda têm dificuldades de entender o valor da moeda brasileira depois de terem sido enganados por um doleiro, em Brasiléia, na troca de dólares por reais. Constrangidos, os que entendem ter dinheiro suficiente para almoçar entram na fila do buffet enquanto alguns, por foça de necessidade, optam por pequenos lanches que o pouco que têm é suficiente para pagar.
A presença dos visitantes inesperados causa toda sorte de reações. Uma mulher puxa a bolsa para perto de si. A menina prestes a se servir de sobremesa é segurada pelo pai, que, ao pé do ouvido, pede que ela espere. Quando um dos haitianos espirra, um homem se levanta e busca rapidamente o álcool em gel sobre o balcão do caixa.
Desde que saiu de Porto Príncipe, Dominique não fala com a família. São escassos os momentos em que é possível carregar o velho celular. Ainda que não fossem, a linha parou de funcionar assim que o aparelho deixou o Haiti. Tudo que Dominique tem são quinze reais, de modo que precisa escolher entre comer ou comprar um cartão telefônico pré-pago para que possa ter um meio de comunicação com a esposa e o filho. Escolhe a segunda opção e, enquanto o motorista trava um sério embate entre os espetos que passam intermitentes por sua mesa, Dominique aproveita para carregar o celular e inserir o chip no aparelho, que, após alguns minutos, vem à vida outra vez e vibra, imitando seu estômago.
André Timm é natural de Porto Alegre e radicado em Chapecó, SC, desde 2004. É autor de Insônia (2011) e Modos Inacabados de Morrer, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura (2017) e publicado na Itália em 2019.