Ler Lukács não é uma tarefa fácil. O intelectual húngaro tem um estilo intrincado e ideias complicadíssimas de se expressar em palavras simples. Não à toa que seus textos se tornam complexos na medida em que ele vai penetrando no assunto a que se dedica a perscrutar. O livro Teoria do romance é um daqueles em que o leitor tem que voltar e reler (às vezes até “tre-ler”) para conseguir captar o intrincado pensamento nas frases longas que ele costuma empregar.

Teoria do romance se insere na categoria de obras em que o autor procura penetrar no âmago da literatura e desconstruí-la enquanto uma atividade social, não um bastião isolado como alguns procuram concebê-la. A forma como ele relaciona sociedade, história e produção literária desafia o tempo e se constitui como uma das referências (concordantes com ele ou não) entre as quais é impossível negar ou ignorar.

O livro é na verdade um ensaio escrito por Lukács em 1917, durante o alvorecer sangrento do breve século XX. Pelo próprio caráter de ensaio, o livro acaba não tendo um fechamento tão conclusivo, funcionando mais como experimentação sobre o tema do que propriamente como um estudo definitivo e exaustivo sobre o tema. Esse fato, entretanto, não lhe tira a solidez e a agudeza de seus questionamentos.

Há de se levar em consideração que pelo fato de ter sido escrito antes da consolidação do que seria considerado posteriormente como o romance contemporâneo, associado ao século XX, em que nomes como Kafka, Proust, Joyce, Musil figuraram emblematicamente; o ensaio de Lukács não dá conta de trazer à discussão (por motivos óbvios) certas tendências e estilos que viriam a se tornar “dominantes” ou ao menos significativos no que diz respeito a produção literária do século XX.

As principais referências literárias de Lukács ao escrever esse ensaio são duas: os romances dos séculos XVIII e XIX, e as epopeias, entre as quais a Ilíada e a Odisséia ocupam, incontestavelmente, o posto central. Essas referências se engrandecem e se tornam prenhes em sentido quando Lukács as entretece com suas contrapartes históricas, procurando reconhecer através do contraste romance/epopeia um processo bem mais amplo e profundo, que se refere à História tanto quanto à literatura.

Lukács escreveu que a epopeia tem sua origem ligada a um tempo em que a realidade não tinha sido fragmentada, o escritor da epopeia e sua sociedade comungavam de concepções e noções muito similares, de modo que ele podia tornar-se porta-voz de um contingente grande de pessoas (por isso a epopeia se refere a história de povos e não de indivíduos) e em que ele podia encontrar alento em um mundo que, guardadas as devidas proporções (e mantidas as aspas), talvez possa ser chamado de “orgânico”.

Já o romance é filho de um tempo muito mais conturbado (significativo também para Barthes, conforme o que ele escreveu no ensaio O grau zero da escritura), que foi fragmentado por tantos anos de História, de guerras, de batalhas, de mundos em choque e de visões de mundo profundamente discrepantes. Não se trata de estabelecer necessariamente uma comparação entre o “tempo antigo da epopeia” e o “tempo moderno do romance”, mas de compreender que o hiato temporal que separa ambos outorga-lhes uma distinção profunda e sensível a suas temáticas, estéticas e características em geral.

Se no tempo da epopeia o mundo possuía uma unidade coesa o suficiente para proporcionar um sentimento de pertença e de glória a uma civilização, engrandecendo-a; isso mais parece uma quimera quando se trata de um romance. Por conta disso é que o herói romântico, segundo Lukács, costuma buscar uma unidade perdida, uma forma para explicar a realidade em termos que foram perdidos. Nas palavras do autor:

“O romance é a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida já não é dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou um problema, mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade.” (p. 61)

Desse modo descortina-se uma visão acerca do romance em que ele se constitui enquanto uma experiência histórica complexa, que procura “(…) descobrir e edificar a totalidade secreta da vida.” (p. 66). O romance, na visão de Lukács, se constitui enquanto uma tentativa de dar inteligibilidade ao mundo que nos cerca, compreender os fragmentos e tentar agrupá-los para ser capaz de produzir uma narrativa que explique ou que busque entender o caos da realidade. Ou pelo menos fazê-la ter algum sentido, ainda que efêmero e fugidio.

O que Lukács não tinha como saber era que a guinada que podia ser observada amplamente na produção literária até então iria mudar radicalmente. No posfácio da edição portuguesa que li, é dito que Dostoievski se tornou um marco dessa mudança. Mesmo sem aprofundarmos a análise, pode-se nitidamente perceber em Kafka como a tônica da literatura havia mudado. Os anseios pela unidade perdida nunca pareceram tão distantes.

LUKÁCS, Gyorgy. Teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, (sem ano de publicação)

(Eu li a edição portuguesa porque achei dando sopa na biblioteca, mas a editora 34 publicou o título no Brasil. A imagem que ilustra esse post é a capa do livro que saiu pela editora.)