Quando você folheia o livro Os passos perdidos, de Alejo Carpentier, e descobre que serão 259 páginas de texto maciço para você encarar, já que não existem parágrafos a não ser no início dos capítulos, você pode até desanimar um pouco, mas não se arrependerá se aceitar o desafio e encarar a jornada.

A disposição das palavras, a organização do texto nas páginas lembra aquela que o Gabriel García Márquez usou em O outono do patriarca; e, assim como o livro do colombiano, o livro de Carpentier não deixa o leitor perdido apesar da aparência de atabalhoamento que a narrativa parece anunciar. Mesmo sem usar travessões, inícios de frases e separações que, em tese, tornariam mais fácil a decifração do teor do texto; Carpentier consegue deixar o leitor devidamente situado e, ainda por cima, esbanjar de uma intimidade com os efeitos sensitivos das palavras que é de invejar.

Carpentier escreveu Os passos perdidos em 1953 (quatro anos após ter debutado no mundo literário com O reino deste mundo) no período em que, depois de ter trabalhado numa rádio em Cuba, o autor residia na Venezuela, de onde só irá sair em 1959, para assumir a direção da editora Nacional logo no pós-Revolução Cubana. Grande parte da exuberância natural que emana do romance de 53 provém do contato e da contemplação do autor em relação às belas paisagens venezuelanas e da floresta amazônica.

A história do livro é a seguinte: um estudioso de música (cujo nome não consta no livro), no melhor estilo acadêmico europeu (embora essa origem não seja precisada) é incumbido da tarefa de pegar um vôo para a América do Sul, em algum lugar da selva amazônica, para que encontre supostos instrumentos musicais primitivo-tribais e os traga para estudos na sociedade acadêmica da qual participa. O protagonista, que já não vive uma relação conjugal saudável com sua mulher, Ruth, resolve levar para sua viagem a amante, Mouche, que partilha de muitas de suas concepções culturais elitistas tradicionais.

A jornada, que começa num hotel na cidade, toma novos rumos conforme uma revolução estoura e o casal adúltero é obrigado a se confinar no prédio. O tédio e a vontade de libertar-se dessa situação os levam a empreender às pressas uma incursão na floresta densa, levando consigo somente os apetrechos necessários e os guias que os conduzirão. É aí que uma profunda mudança começa a operar sobre o estudioso.

O ambiente selvagem descortina uma experiência espiritual, intensifica a sensação de estar vivo, leva a contemplação do protagonista, que outrora só tinha olhos para a cultura tradicional, a patamares novos, mais proximais e muito mais profundos. Há todo um processo de transformação pululando em seu ser, de modo que aqueles modelos clássicos e obras notáveis que ele costumava admirar sejam parcialmente ofuscados pelo brilho dessa nova que se desdobra em frente a ele.

O texto do autor ás vezes assume tamanho rebusco, tão exuberantes volteios e elaborações estéticas e sinestésicas que parece que a trama não conseguirá sustentar todo o seu peso, mas descobre-se que o próprio floreio é o que torna a narrativa tão plena de sentido, tão vívida e cheia de energia. A forma como Carpentier opta por narrar e descrever parece por vezes esquecer que comunica, se dedicando a contemplar e reverenciar, em mostrar o que há de sublime na experiência do protagonista e, em âmbito mais geral, na própria América Latina, que ele representaria posteriormente junto à França.

O fato de o autor ter se tornado posteriormente embaixador de Cuba na França (inclusive pelo fato de ele ser filho de franceses) diz muito sobre as preocupações de sua literatura. Assim como ele assumiu o compromisso de representar e pôr em pé de igualdade Cuba frente à França, também sua literatura assume a hercúlea tarefa de pleitear à cultura latino-americana um lugar entre a tradição clássica cultural da humanidade. Isso fica evidente inclusive quando observamos Concerto barroco, bem como quando observamos o êxtase do estudioso de Os passos perdidos ao se encontrar em meio aos encantos dessa terra.

A maneira como o autor cumpre essa tarefa se apresenta tão rica quanto o próprio conteúdo dessa defesa, pois ele mostra reverência e respeito às culturas de ambos os lados do Atlântico, colocando-as em pé de igualdade, ainda que puxe um pouco para a América Latina, obviamente. Esse efervescente diálogo foi o que talhou as formas de sua arte.