Com três anos de atraso, chega às minhas mãos uma edição que é puro estado da arte. Com tradução de dois bambas (Alexandre Barbosa de Souza e Irene Hirsch), pela Cosac & Naify (2008). Estou falando de Moby Dick, de Herman Melville. Como muitos sabem, o livro é o relato de um marinheiro, Ishmael, que parte no baleeiro Nantucket e termina, no meio do Pacífico Sul, encontrando um gigantesco cachalote branco, responsável por, no passado, ter arrancado uma perna de seu capitão Ahab. A obsessão de Ahab em matar o bichão é a linha que costura a obra-prima, mas não é sua única qualidade. Pelo meio disso tudo, o autor mistura gêneros e leituras que teve. Vemos laivos de Shakespeare (Macbeth), de Homero, até narrativas de viagens (veio-me à cabeça Coração das trevas, de Joseph Conrad). Como é de se esperar, há até digressões científicas dignas do positivismo da época (o romance é de 1851), além de filosofadas deliciosas que transformam a obra em algo muito maior que um amontoado de episódios de uma trama. Quero dizer: não só é um grande livro, mas também se trata de obra que desperta o prazer do leitor. E é disso que quero falar.

Por pura falta de tempo ainda não abri o calhamaço de mais de 600 páginas, mas quero fazê-lo o quanto antes. Não apenas pelo prazer do texto, mas por um exercício de viagem no tempo. Explico.

Apesar de ter vivido numa casa sem livros, desde cedo me interessei por eles e pela viagem que a literatura nos proporciona. Pelo salto no escuro que nos faz perpetrar. Consegui isso não sem ajuda. Das três pessoas mais importantes para mim no quesito de me despertar o prazer pela leitura, fecho agora os olhos e me lembro dos lábios finos e dos olhos pequenos e fundos de dona Virgínia, bibliotecária de um colégio de padres salesianos que passei toda a minha adolescência. Foi ela a responsável por me levar pela primeira vez por um corredor enorme, cercado de estantes, e nelas, livros. Centenas deles. Todos prontos para serem lidos por aquele moleque magricela de doze, treze anos. Puro fascínio.

Escrevi fascínio? Não só. Eu olhava aquela imensidão de livros com misto disso com medo, impossibilidade e desafio, apreensão e um desejo inconcebível de me ver mergulhado naquele universo que se abria. Pedi ajuda e a bibliotecária de lábios de confete me levou pela mão, me apresentando pé ante pé, com cuidado de ourives e mãos de chuva fina a livros que eram mundos, a mundos que se abriam em dificuldades crescentes e muito prazer: às emílias e narizinhos de Monteiro Lobato (os mais novos apenas podem achá-lo preconceituoso, mas isso é bobagem de um mundo que cada vez mais peca por estar se transformando num lugar sem graça, onde tudo é proibido por ser “politicamente incorreto”), ao Axel de Viagem ao centro da terra, ao Ulisses de uma edição facilitada da Odisseia, à Dona Flor e aos meninos sujos dos trabiques da Salvador dum Jorge Amado, aos Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár. Tantos outros que já me sinto cruel por não ter aqui espaço para nomeá-los todos.

Quero falar do mergulho, do abismo, da certeza de que a literatura nos leva a lugares que, de tão escuros, clareiam qualquer entendimento – sem abrir mão do prazer de um leitor frente a essa enorme fresta de possibilidades que é a experiência literária.

Hoje, por conta de atividades mais acadêmicas, às vezes sinto inveja de mim. Do menino que começava a trilhar aquele caminho, no meio daquele corredor gigantesco. Muitas vezes leio um livro já pensando-o criticamente. Com filtro, como os cigarros que eu fumo. A inveja que disse sentir vem da dificuldade que sinto hoje de me entregar ao êxtase, à viagem de simplesmente ler um livro e sentir temor, alegria, susto ou qualquer outra coisa. Sem filtro, como os cigarros que meu pai fumava.

O volume de Moby Dick provocou essa viagem no tempo. Me fez sentir vontade de voltar a ser menino. Sem demagogia. Um pouco de nostalgia? Sim, e não vejo nada de mal nisso, sobretudo quando se passa dos quarenta. Vontade da primeira vez. O primeiro trago, a primeira noite em claro, o primeiro tudo. Até hoje, quando fecho os olhos e rememoro o primeiro beijo que dei, o perfume de Nina (era o nome da minha primeira cobaia) me avassala e me entorpece de certezas. Das mesmas certezas que tenho quando releio uma obra que li quando era adolescente: de que, apesar do tempo ter passado, somos os mesmos, com alguns upgrades necessários e incontornáveis e de que os livros existem aos milhares para serem lidos (pura impotência para quem os quer sempre por perto). Dessas certezas, nasce a pergunta: se não traz nenhuma consequência prática que possa ser medida, qual é a razão para que a arte exista? Ferreira Gullar, um poeta com pê maiúsculo, desfaz a dúvida: a arte existe porque o mundo não basta.

Sobre o autor: João Luiz Peçanha Couto é professor e jornalista. Escreve semanalmente para o jornal Gente e Empresas a coluna “Espaço Literário”.