Um homem solitário e que só se dá mal na vida. Ele é um agente. Deve trabalhar com uma cantora de ópera, cuja voz, para ele, é a síntese de toda a pureza e de toda a beleza. E, dessa forma insuspeita, começa O Natimorto, drama (difícil dizer com certeza, digo isso pela forma do texto e pela versão teatral que vi há alguns anos) de Lourenço Mutarelli.

Mutarelli sagrou-se como autor de quadrinhos, para abandoná-los em prol da literatura e, agora, ao que parece, voltar a se dedicar à arte de Eisner (coisas que se ouviu pela Gibicon…). Sua obra literária, porém, é bastante prolífica, tendo, inclusive, originado adaptações cinematográficas e teatrais. Apesar de derivar entre diferentes mídias, Mutarelli mantém uma constante em suas obras: um universo um tanto perturbador, distorcido.

Em O Natimorto isso está escondido, porém, em meio a uma poesia incessante. O agente, que é denominado somente como ‘Agente’, apaixona-se pela cantora- a quem ele chama de ‘Voz da Pureza’- e enxerga nela uma fuga para seu chefe abusivo, para seu casamento entediante,  e para todas as suas frustrações e desilusões.

Sugere, por isso, que ele e a Voz da Pureza passem a viver isolados em quarto de hotel, sem nenhum contato com o mundo exterior- um mundo de tristeza e desesperança. Apesar de ela não aceitar as coisas exatamente nos termos dele, algo surge a partir daí. Ele, inclusive, chega a expor a ela alguma de suas ideias mais excêntricas e pessoais, como a de ler o futuro pela imagem de advertência que está impressa atrás de sua caixa de cigarro diária, como se fosse uma carta de tarot.

A partir daí ocorre uma escalada da insanidade, e contar mais seria spoiler. Mas vale a pena dizer que tudo é feito com muito cuidado, e que ao mesmo tempo em que as coisas podem soar muito engraçadas, elas são terrivelmente delicadas e sérias.

Quanto ao modo como as coisas são construídas, aliás, é interessante lembrar que o livro não traz descrições de personagens, lugares ou ações, sendo estruturada como algo entre um poema e uma peça teatral.

Em um certo momento, o Agente diz que considera Nietzsche muito adolescente. É um momento memorável e que traduz bem muito do que é dito- desde que se lembre que a obra carrega algo inegavelmente nietzschiano.

O Natimorto

de Lourenço Mutarelli,

132 págs,

R$38,00.

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