Todo cineasta tem certas influências chaves, os autores que, em um primeiro momento, moldaram seu entendimento e sua percepção do cinema. Para mim, David Fincher foi um deles: seus filmes foram os primeiros em que descobri o cinema enquanto tecido, linguagem e forma manipulável. Para ele, e nesse filme isso se torna mais claro do que nunca, Hitchcock é um pilar de formação.

Garota Exemplar é hitchcockiano até os ossos. A referência está na atuação de Rosamund Pike, loira, impecável, alternando e misturando o charme de uma Grace Kelly com a impenetrabilidade de Kim Novak em Vertigo, ou Tippi Hedren em Marnie, na fotografia contrastada e no plano que faz o motel de beira de estrada notavelmente parecido com o Bates Motel. Está também, mas do que em tudo, no clássico whodunnit.

O whodunnit é uma estrutura dos romances e filmes policiais em que o espectador é levado a se envolver na investigação junto com os personagens. Pistas e informações são fornecidas de modo que ele possa formar um quadro mental em sua mente até que a verdade seja revelada no clímax da narrativa. O que acontece é que quase sempre essas histórias são conduzidas por narradores pouco confiáveis e o whodunnit, quase que invariavelmente, aponta o espectador na direção errada.

Com cem anos de cinema, a maior parte dos espectadores já está escolado o suficiente para saber que o vilão dificilmente é aquele para quem todas as pistas apontam. Não haveria surpresa e prazer na resolução se fosse assim. David Fincher sabe disso. E sabe também que, ao adaptar um livro policial, boa parte de seu público já sabe exatamente o que acontece e, assim, ele opta pelo que é o maior mérito de sua adaptação: Garota Exemplar não é sobre o mistério.

Fincher entrega a resolução antes da metade do filme. A partir daí o que era uma história de mistério torna-se um thriller de perseguição e um mergulho na mente de uma psicopata. O gênero policial sempre interessou a Fincher, mas em todas as suas investidas na forma (Seven, Zodíaco, mesmo Os Homens que Não Amavam as Mulheres) a resolução em si é o que menos importa, mas a complexidade da trama, a confecção do tecido.

E aqui ele reflete a trama impecável de Amy Dunne na forma de seu longa. No início, Garota Exemplar é um filme de costuras invisíveis. Os planos fluem suaves de um para os outros, toda a direção de arte tem um tom mortiço de cinza azulado, não há nada de característico ou especial nos enquadramentos, fotografia, escolhas estéticas em geral. Todo o filme é como a grande imagem da garota desaparecida estampada em um cartaz: bela, mas fria, sorriso congelado, correta, exemplar e sem alma.

O único sinal de que algo está errado vem pela trilha de Trent Reznor e Atticus Ross: ela acompanha a história quase imperceptível, mas dissonante, incômoda. Reznor é um gênio da música que soa como um pesadelo e sua parceria com David Fincher vem se mostrando cada vez mais apropriada. Conforme as informações se desencontram e a narrativa se torna complexa, também os planos vão se complicando, as cores esquentam, o ritmo da montagem acelera e a trilha cresce. Até o momento em que tudo vira ao contrário.

Garota Exemplar é narrado por Amy Dunne e sua obsessão é justamente a perfeição: um casamento perfeito, um marido moldado perfeitamente as suas vontades. O início do filme, especialmente os flashbacks, é todo envolto em uma aura de sonho, uma perfeição quase irritante. Como a da personagem que Amy inspirou.

A dissonância entre a imagem e a realidade, nossa tendência a contar histórias de uma felicidade impossível e, principalmente, o poder gigantesco das narrativas vem sendo o tema do diretor desde A Rede Social e Fincher torna essa história sua história no tratamento desse tema. Nick Dunne é uma vítima do circo da mídia e o espectador tão manipulado por Amy quanto todo o país. As histórias que contamos, Fincher lembra, são poderosas. Sociopatas (o Mark Zuckeberg de A Rede Social pode não ser Amy Dunne, mas não é nenhum exemplo de empatia) são casos extremos, mas todos nós corremos o risco de acabar vivendo a vida que contamos. Em determinado momento de A Rede Social, uma garota pergunta “se eu fui a uma festa e nenhuma foto apareceu no facebook, eu realmente fui a essa festa?”

O discurso de Amy sobre ser “uma garota legal” é exatamente sobre isso: a vida e os relacionamentos não esperam que sejamos quem somos, mas uma versão enfeitada, açucarada, melhor contada. Amy leva ao extremo a ideia de que é possível vencer na vida sendo apenas a pessoa que conta a melhor história e o advogado de Nick concorda plenamente com essa afirmativa.

A coisa mais interessante do filme é esse reflexo, essa metalinguagem explícita. É um mistério hitchcockiano extremamente autoconsciente, ao mesmo tempo eficiente e mais interessante do que uma pura história de mistério. Por outro lado, é o menos memorável dos filmes de David Fincher desde O Curioso Caso de Benjamin Button. Garota Exemplar não tem o formalismo frio e experimental de A Rede Social nem a animalidade e a crueza de Os Homens que Não Amavam as Mulheres. Transita em algum lugar no meio e é um dos filmes mais assumidamente comerciais de Fincher.

Isso não é um problema, mas o sucesso comercial requer sempre uma diluição, uma adequação. Fincher dilui o que é desconfortável nele sem perder sua identidade como autor, o que é um desafio gigantesco e dificilmente vencido. O que mais fica claro nesse longa é seu domínio dos mecanismos do cinema e a brincadeira entre forma e conteúdo que isso lhe permite fazer: Fincher, como Amy, manipula seus espectadores porque ambos entendem que a verdade nada mais é do que parece ser e, portanto, é preciso fazer parecer a coisa certa.

Pike, aliás, está soberba como Amy Dunne, convincente, mutável, maleável. Neil Patrick Harris faz um bom trabalho em abandonar sua persona adorável e tornar-se alguém quase tão detestável quanto a própria Amy. Ben Affleck, que nunca foi um grande ator, sai-se razoavelmente bem e seu carisma natural é essencial para que Nick funcione enquanto personagem.

Garota Exemplar é um bom filme, eficiente e ao mesmo tempo complexo. Talvez sem a força de trabalhos anteriores do diretor, mas ainda notável, uma homenagem e um reforço do que Hollywood tem de melhor.