Para o bem e para o mal, a internet sempre nos surpreende. Uma hora você descobre que Philip Seymour Hoffman morreu. Na seguinte, fica sabendo de um desafio internacional cuja proposta é que leiamos mais mulheres: #readwomen2014 – vi a hashtag traduzida no título de um Tumblr.
Joanna Walsh se pergunta se o projeto (criado por ela quando viu a boa recepção de seus cartões de feliz ano novo/marcadores de página, em que desenhou algumas de suas autoras favoritas) mudará nossos hábitos de leitura. No meio do texto, há um link para dados sobre a representatividade das mulheres em veículos literários. Também há outro, em que Lionel Shriver – autora de Precisamos falar sobre o Kevin – discorre sobre como queriam dar uma capa de mulherzinha a um livro sórdido escrito por ela. Li tudo e ainda aproveitei para conferir uma lista com 50 dicas de leitura para o ano.
“Ah, Tuca, legal você entrar nessa de ler mais literatura feminina.”
Legal, né? O único problema é que não é disso que estou falando. O trecho abaixo é de uma conversa de Rogério Pereira com Elvira Vigna, no Paiol Literário1, com o qual concordo.
Não acho que haja nada nem parecido com literatura feminina, isso é uma grosseria. Você teria que dizer que é uma literatura feminina de classe média ou baixa; de uma mulher negra ou branca; rural ou urbana; velha ou moça — e aí você vai afunilando até chegar nessa ou naquela escritora, e uma não vai ter nada a ver com a outra a não ser o fato de serem mulheres. Eu sou uma mulher, não acho que minha literatura seja feminina nesse sentido. É uma literatura feita por mim, uma das minhas características é ser mulher. Ressaltar esse fato é um alijamento e uma exclusão, e a única coisa que eu posso dizer para concluir é a lembrança dos narradores masculinos que abundam na literatura universal desde que ela existe no mundo.
Em outras palavras: é difícil entender um cidadão que diz não gostar de literatura feminina. Porque a literatura escrita por mulheres não poderia ser mais diversa.
* * *
Antes de continuar, algumas considerações:
* Não gosto do imperativo #leiamulheres2014, meio publicitário demais pro meu gosto (beba coca-cola! compre batom! experimenta! experimenta! leia!). Implicância besta, eu sei, mas sempre gostei mais de literatura não obrigatória, não enfiada goela abaixo.
* Nada a ver julgar o coleguinha do lado só porque ele não vai mudar a lista de leituras do ano por conta da hashtag – justo aquele que disse: “Pô, eu consigo ler uns quatro por ano e decidi que 2014 é Guerra e paz na cabeça. Deste ano não passa! Mas tô achando que só vou conseguir ler ele…”. É tão bom quando cada um cuida da própria vida, né?
* E, por favor, nada de desconto só “porque o livro é de uma mulher”. Se você pegou um livro ruim, fale isso na cara dura, que aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação (e condescendência). Se é bom, mas nada além disso, seja sincero. Você estará discorrendo sobre AQUELE livro escrito por UMA mulher, não analisando a literatura feminina como um todo – depois de um livro, você sequer consegue dar conta da obra da autora em questão.
Grato.
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Uma das dúvidas de Joanna Walsh é se o projeto criado por ela resultará em mudanças dos nossos hábitos de leitura. Pudera: esquecemos facilmente o que vemos na internet. O projeto é para o ano inteiro e ainda estamos em fevereiro. Como será, sei lá, em abril?
Partindo do pressuposto de que falar em termos abstratos é complicado, parto de minha experiência como leitor. Em 2012, inventei um desafio chamado “Autoras de Literatura Contemporânea Brasileira”, com regras bem específicas2. Pedi, inclusive, algumas sugestões de leitura. Escrevi sobre Carol Bensimon, Carola Saavedra e Adriana Falcão ainda naquele ano e – por mais que não tenha escrito mais nada sobre o assunto desde então – as leituras se acumularam e mais algumas escritoras já poderiam ter textos específicos sobre suas obras: Luisa Geisler, Vanessa Barbara, Elvira Vigna, Beatriz Bracher e, mais recentemente, Veronica Stigger.
Acabei de fazer os cálculos: no final de 2012, mesmo buscando ativamente ler mais mulheres, apenas 16,4% dos livros lidos continham mulheres – incluindo obras em parceria, antologias com diversos autores e os infantis de que gosto tanto. Sim, um número pífio. Mas, ainda assim, foi o dobro do que tinha lido no anterior (7,8%) – o que é ainda pior, pois li menos títulos em 2011. A surpresa se dá com os números de 2013: além de ter lido mais livros que no ano anterior, a porcentagem da presença feminina aumentou para 40,2%.
Então, a partir da minha experiência, eu poderia responder que: sim, um projeto desses é bem capaz de conseguir mudar os hábitos de leitura de alguém. De alguém curioso, não muito apegado à sua zona de conforto, em especial. É só não deixar a bola cair durante o ano.
A pergunta final é: o que eu posso fazer em prol desse projeto? Como divulgador – não somos todos? – posso ajudar a manter viva a hashtag. Viu a resenha de um livro que está entre os seus favoritos ou só quer dizer, em 140 caracteres, que gostou muito da última leitura? Coloca um #leiamulheres2014 (ou um #readwomen2014) junto. Como crítico, posso dar sequência aos textos do desafio citado acima – podem me cobrar, inclusive.
Como leitor, a tarefa é mais fácil: é só continuar na busca por novos livros e escritoras3. Às vezes, errando feio. Às vezes, descobrindo mais um para a estante de favoritos.
Igual a tudo na vida.
* * *
Três escritoras que nunca li (mas de 2014 não passa!):
* Zadie Smith;
* Nicole Krauss;
* Marie Ndiaye.
- Você pode ler o resto aqui. Destaque para as seções “Reacionário”, “Mito falido” e “Acesso restrito”, que complementam o trecho que transcrevi aqui, originalmente intitulado “Exclusão”. ↩
- Aliás, foi um baita esforço não repetir aqui tanto o que já tinha escrito no post inaugural do desafio, quanto o que escrevi na resenha do livro Como ser mulher, de Caitlin Moran. ↩
- Aliás, este ano já li três: az mulerez, de Natércia Pontes (livrinho que provavelmente agradará aos que se empolgaram com Copacabana Dreams); Azul é a cor mais quente, de Julia Maroh (ainda não vi o filme, mas a hq vale MUITO a pena); e Opsanie Swiata, de Veronica Stigger (foi o meu primeiro presente de aniversário não engordativo do ano; creio que agradará os fãs de Os anões e as pessoas que gostam do Valêncio Xavier, em especial d’o mez da grippe). ↩
Nicole Krauss e Marie Ndiaye são muito amor – acho que vc vai gostar 😉 Beijos!
Também acho. ^^ Da Krauss já li metade de um e tava adorando.
Beijão!
O texto disse tudo. Também acho esquisitice das mais absurdas o termo “literatura de mulher”. Mas é fato que, como em muitos outros meios, no meio literário ainda ocorre o preconceito de gênero.
Honestamente, não sei nem dizer qual a porcentagem de homens e mulheres nas minhas leituras; é algo em que não presto atenção, na verdade. Mas acho legal a ideia do projeto e curti a ideia de divulgar a hashtag, vou entrar nessa. Publicitário e comercial demais, concordo. Mas oras, se o objetivo é atingir mais gente, talvez seja esse mesmo o caminho (e olha que eu nem estou falando como publicitária hehe). E ah, eu curtia muito aquele comercial do Baton. =P
Ah, também estou querendo muito ler Marie Ndiaye; na verdade, desde o ano passado eu dizia “não passa deste ano”. Vamos ver se de 2014 não passa mesmo!
Beijão, Livro Lab
Eu só consegui os números citados porque SEMPRE marco um livro que terminei de ler no Skoob. No final, fica fácil encontrar as referências.
2014: o ano Ndiayeayayyayeyaye!
Beijão.
Nicole Krauss é uma escritora de mão cheia. Aproveite e leia aquele livro que eu te enviei como um presente entusiasta pela obra dessa escritora, hehe.
Eu parei na metade. =( Recomeço a leitura este ano. ^^
Pode adicionar Natsuo Kirno nessa lista. Heavy stuff!
*Natsuo Kirino
Também: Margaret Atwood, Ursula K. Le Guin. Li essas 3 ano passado e os livros das 3 ficaram no meu top 10.
Quais livros cê leu? A Le Guin entrou na minha lista quando divulguei a coluna no facebook. A Atwood também já foi bem indicada por um amigo. Mas a Kirino eu nem sabia que existia.
A Kirino é Foda com F maiúsculo, mas só tem 2 livros no Brasil, “Grotescas” e “Do outro lado”. A crítica chama os livros dela de “noir feminista”. Da Le Guin e da Atwood, só li “A mão esquerda da escuridão” e “O conto da aia”, respectivamente, ambos muito bons.
Le Guin e Atwood são mais cerebrais, mas a Kirino mexe com o estômago.