Dos criadores de South Park, Trey Parker, Robert Lopez e Matt Stone, chega ao Brasil o elogiado musical da Broadway, vencedor de nove prêmios Tony, em montagem estilo guerrilha da talentosa equipe da UNIRIO, liderada pelo professor Rubens Lima Jr, que há sete anos comanda por lá o projeto Teatro Musicado.

The Book of Mormon acompanha a dupla de missionários Elder Price e Elder Cunningham em trabalho evangelizador pelo nordeste de Uganda, mantendo o mesmo humor cortante a que nos acostumamos com o desenho ao mostrar o choque cultural entre duas civilizações. Além disso, demonstra a madura habilidade dos realizadores em prestar tributo, mesmo que na maioria das vezes em forma de sátira, a clássicos musicais como A noviça rebelde e O Rei Leão (vide a canção Hasa Diga Eebowai, uma versão politicamente incorreta de Hakuna Matata).

Na inspirada versão brasileira assinada por Alexandre Amorim, vinte e cinco jovens e talentosos atores e atrizes se desdobram em personagens e funções técnicas para contar a cômica jornada dos heróis pelo país inóspito. Em interpretações marcantes, Hugo Kerth é Elder Price e Leo Bahia faz espetacularmente Elder Cunningham, uma mistura de nerd-filhinho-da-mamãe-com-leve-autismo que pipoca o enredo com ótimas referências culturais, brincando com Star Wars e Star Trek e provocando nossas melhores gargalhadas.

A história fisga os glúteos do politicamente correto ao mostrar uma África estereotipada, onde todos têm AIDS e creem que a cura está no estupro de bebês, bem como ao dar contornos homossexuais ao grupo de missionários, como na fabulosa performance Desligar1, sobre repressão de “impulsos impuros”. Contudo, mantém sempre um toque de ironia todo particular, que beira o humor negro judaico, aquela maravilhosa capacidade de rir dos próprios costumes, manias e incoerências e que, de certa forma, se espalhou por toda a cultura estadunidense – e agora parece estar chegando ao Brasil.

Adaptando João Cabral de Melo Neto (que odiaria a peça, uma vez que dizia não gostar de música): The Book of Mormon é como uma “faca só lâmina”, mas uma faca cor de rosa, uma faca de faz cócegas.

Crítica mordaz à irracionalidade religiosa, não deve surpreender ver a fé sendo escrachadamente mostrada como ignorância e infantilidade, afinal de contas, estamos falando dos mesmos autores daquele épico e polêmico episódio de South Park em que uma estátua da Virgem Maria sangra pelo ânus. Curiosamente, em The Book of Mormon os autores conseguem pegar mais leve, com críticas mais inteligentes e pontuando os palavrões em momentos muito acertados.

A versão brasileira não deve em nada à montagem da Broadway – aqueles que forem assistir poderão comparar através dos inúmeros vídeos da versão original disponíveis no YouTube. Mesmo contando com orçamento limitadíssimo – embora amparado pela Fundação Cesgranrio –, o cenário é eficiente e inteligente e as versões brasileiras mantêm o humor e a pegada em todas as músicas.

A qualidade de The Book of Mormon da UNIRIO é tanta que rendeu elogios da temida e respeitada crítica de teatro Barbara Heliodora, em uma de suas últimas críticas2, que disse tratar-se da “mais divertida surpresa do segundo semestre” [de 2013]. Além disso, em praticamente toda sessão um grande nome do teatro ou da tevê encontra-se na plateia.

Para os que pretendem assistir The Book of Mormon nas apresentações gratuitas do teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, no belíssimo bairro carioca da Urca, recomenda-se disposição: embora não se cobre pelo ingresso (apenas uma doação totalmente opcional, no fim da sessão), os interessados deverão retirá-los com uma hora de antecedência, o que presume chegar à fila pelo menos com duas horas e meia de antecedência, uma vez que a procura é grande – e o sucesso mais do que merecido.

O tour de force do público é recompensado por quase duas horas de meia de bom teatro, onde saímos todos exaustos – não pelo excesso de números musicais, nem pela duração, mas pela quantidade de gargalhadas a que a peça nos leva.

Longa vida à versão brasileira de The Book of Mormon (a da versão americana já está garantida, com a adaptação ao Cinema). Que a peça consiga força suficiente para migrar ao circuito comercial, encantando e divertindo maiores e maiores plateias Brasil afora3.

  1. A versão original, Take it Off, pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=N6Ag6gynp2I
  2. A escritora, de 90 anos, se aposentou das críticas e agora dedica-se a traduções de peças clássicas, em seu casarão no Cosme Velho, como pode ser lido na edição n° 815, da Revista Época
  3. Dedicado a Elisabete Volcof, minha mãe, que riu como eu nunca havia visto vendo a peça