Memória, ou a falta dela, tem sido um tema constante das minhas leituras em 2013. O que exatamente marca a memória de alguém? Em grande parte desenvolvemos esse tema através de traumas, perdas e rememoração. Um dos exemplos que mais marcaram nos livros lidos foi em O sentido de um fim, quando as lembranças pregam peças e podem permanecer equivocadas por uma vida inteira. E, agora, quase no meio do ano, chega em minhas mãos Memória da pedra, de Maurício Lyrio, que mostra como uma simples busca, por causa de um trauma, pode desenrolar em diversas narrativas, em diversos personagens e muitos dilemas. Um romance que em linhas gerais poderia ser classificado como bem escrito, intrigante e bonito. Muito bonito, aliás.

Eduardo é professor de filosofia e órfão desde a mais tenra idade, quando seus pais sofreram um acidente de automóvel fatal. Anos mais tarde encontra o laudo de uma radiografia do pai, levando-o a acreditar que a morte dos pais fora premeditada. Em contrapartida, a procura por um médico para analisar a nova descoberta faz Eduardo se aproximar do Dr. Gilberto. Os dois criam uma forte amizade e passam a viajar, jantar e fazer diversos programas de casais junto com Marina – uma psicóloga que escreve sob um pseudônimo livros para ajudar mulheres em relacionamentos –, mulher de Gilberto; e Laura, namorada de Eduardo.

 

(…) não é a morte que nos livra da memória, é a perda da memória que nos livra da morte

 

O laudo médico sobre a radiografia é o MacGuffin de Memória da pedra, afinal as lembranças – e a ruptura dessas –  sobre os pais não são tão relevantes como se faz acreditar nos primeiros capítulos. Ouso dizer que o livro, como um todo, é um diário de memórias de todos os personagens em terceira pessoa e não um simples retrato de trauma desembocando na vida presente. Em miúdos, é um romance em que um mínimo detalhe – o laudo, T.S. Eliot, um pé na areia, etc. – pode desencadear, mais à frente, um acontecimento relevante interligado com outros menores mas impactantes.

O grande destaque do livro é a base com a qual seus personagens secundários ou principais são desenvolvidos, evitando apelar para descrições em demasia ou numa linearidade enfadonha. O vai e vem das histórias de cada personagem do livro colabora muito para a construção de Eduardo, Marina, Gilberto e, em grande evidência, Laura. Marina ganha uma atenção especial por sua psique instável e inteligência, equiparável a de Eduardo, mas com muitos mais tormentos que ele. Pertence a ela uma das muitas passagens surpreendentes de Memória da pedra como a descrição sobre seus pacientes adúlteros para ilustrar um pensamento, que ela tenta desenvolver durante as muitas reuniões do quarteto. Todavia, é Laura quem salta de importância nas derradeiras páginas quando o leitor confronta sua família falsamente modelo e sabe um pouco mais sobre o seu passado através dos sutis diálogos com Eduardo.

Completa o caleidoscópio de personagens principais Romário, menino de rua que impressiona Eduardo pela sua inteligência em estado bruto. O professor “adota” o garoto para ensinar coisas elementares para viver em sociedade e tenta expandir seu talento natural para atuação. A naturalidade do menino rouba a atenção a cada observação peculiar, inocente – dependendo da situação – e, ao mesmo tempo, ácida que faz. Um dos pontos altos é a comparação entre masturbação e filosofia, onde o garoto, sem perder tempo analisa que se dependesse do onanismo seria um gênio. É também com a presença de Romário que a evidente dualidade hipócrita dos seres humanos é totalmente exposta. Enquanto o menino mente e dissimula para conseguir as coisas nas ruas, as pessoas do seu novo convívio – no meio da classe média alta do Rio de Janeiro – fazem o mesmo para se suportarem, como é o caso de Eduardo e seu sogro, Hélio.

 

– Masturbador? – perguntou Romário.
– Quem se excita com as próprias mãos – disse Eduardo.
– Como assim?
– Punheteiro – disse Anita.
(…)
– Sou gênio, então? – Romário examinava as próprias mãos.

 

Maurício Lyrio ainda mostra um ótimo talento descritivo ao falar sobre as paisagens do Rio de Janeiro sem se apegar a clichês estilísticos ou exaltar demais os lugares-comum. O mesmo vale para descrever fisica e psicologicamente cada um dos personagens que criou. Todos esses elementos somados edificam a beleza de ser um livro bem escrito e belo. A vontade de virar o nariz é bem grande, mas passa tão rápido quanto os primeiros capítulos. É impressionante que ao fim de Memória da pedra nada está fora do lugar, da intriga mais longa até o mais passageiro personagem tudo ganha relevância e proporção gigantesca para o encerramento triunfal da narrativa.