Ficção ou autoficção? É a pergunta que muitos leitores e críticos literários têm se feito ao debruçar-se nos últimos livros publicados de Ricardo Lísias. Ele, por sua vez, nega seu suposto autoficcionismo, e diz algo que, soberanamente, faz todo o sentido no conceito estético de sua prosa, remetendo-me a esta conclusão: de que independente se os fatos ocorridos na vida íntima do escritor são usados (ou inspiram) em sua produção literária, logo quando registrados para o papel, todo um determinado senso de uma “possível legitimidade com os fatos reais” se dissipa, de alguma maneira, numa flexão metamórfica entre o terreno do “real” e o “ficcional”, uma vez que a captação do “factual”, dos segundos e minutos efêmeros que sempre sucedem a um novo episódio de nossas vidas, mesmo num livro de memórias, não exibe a mesma projeção do que já se foi.

O que foi é fruto de estória – com E ou H, como quiser –, porque mesmo buscando a fidelidade da coisa em si, ela naturalmente se perde com o “não tudo” que foi capturado. Principalmente quando há outras personagens envolvidas. Nesse sentido, é muito fácil perceber que sobre o olhar dos outros algumas percepções do tempo e espaço podem parecer distintas de quem toma a voz protagonista para interpretá-las, ainda que dentro de um mesmo contexto. E a realidade, não diferente da literatura, venhamos e convenhamos, é para lá de complexa e subjetiva.

Se o “projeto literário” de Lísias foi exatamente criar um diário quase cartesiano de sua vida mascarando de forma produtiva em uma narrativa de ficção, ele tem feito bem. Seus dois últimos romances são bem convidativos e fazem seus leitores pairarem sobre a sindicância desafiadora da dúvida do “será que aconteceu ou não aconteceu?” “É autoficção?”

O escritor paulista, nascido em 1975, deu seu pontapé inicial na literatura enviando, lá pelos fins dos anos 90, seu primeiro original para a editora Rocco, sem a menor ideia de que alguns meses depois a editora ligaria para a sua casa com o interesse de publicá-lo. Tratava-se de seu primeiro romance, Cobertor de estrelas (1999), que, mesmo não tendo recebido grande notoriedade crítica na época, foi traduzido para alguns países, mostrando ao jovem Lísias, que naquele momento ainda cursava Letras pela Unicamp, e posteriormente seria Mestre em Teoria Literária e Doutor em Literatura Brasileira, um futuro já predestinado – a de ser um ficcionista (considerado hoje um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea).

Entre romances, novelas e contos publicados ao longo de mais de uma década de carreira literária, seus trabalhos mais notáveis são: Duas praças (2005), O livro dos Mandarins (2009) e O céu dos suicidas (2012), este premiado na categoria melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Retorna agora à prosa com o romance Divórcio, inspirado novamente em um fato real de sua vida, e que se reflete em ficção na vida de um outro Ricardo, o narrador-personagem do livro, um homem angustiado pelo sentimento da perda após uma ruptura conjugal traumática, a que se soma uma teia de surpresas e frustrações que lhe são explicitamente reveladas indo de encontro ao diário de sua ex-esposa.

“O livro parte de uma experiência pessoal e traumática e a partir de então recria um tema comum e importante para a sociedade contemporânea”, disse o autor em entrevista exclusiva para o Posfácio.

Ao tomar a leitura do diário, Ricardo (personagem) encontra um escárnio de si mesmo nas palavras da jornalista cultural mais influente do país, com quem era casado, que o diminui em todos os aspectos morais, como homem e marido, ainda na época de cônjuges, revelando também tê-lo traído.

O casamento não dura mais do que quatro meses. Porém, após o divórcio, Ricardo se vê metaforicamente “sem pele”, instável, rememorando todo o trauma vivido dentro daquele castelo de areia que foi o seu casamento, abruptamente desmoronado. O livro também critica alguns aspectos negativos relacionados ao meio jornalístico, através das atitudes egocêntricas e pouco éticas de sua ex-esposa.

“O artifício de fazer o narrador ter o mesmo nome do autor é antigo na literatura. Ele serve na verdade para ressaltar justamente o aspecto artístico do texto. Como ao menos para os artistas é ponto pacífico que a linguagem é limitada diante da realidade, não resta dúvida de que um livro não reflete o mundo real. No entanto, no caso dos meus dois últimos livros, ocorre em parte o efeito contrário para o leitor. Creio que isso se dê em parte pela grande dificuldade do público brasileiro lidar com questões propriamente estéticas”, explicou, quando perguntado sobre a presença de seu nome em seus últimos livros.

Fernando Pessoa disse em um de seus mais emblemáticos versos de que o poeta é um fingidor. E eu perguntei ao Ricardo (escritor) se o ficcionista também era. O autor respondeu: “O ficcionista cria uma realidade diferente para intervir na nossa realidade. Não acho, portanto, que a palavra “fingimento” caia bem. Prefiro a palavra “criação” e a palavra “intervenção””.

Talvez o grande Lísias não tenha entendido a minha pergunta ou a intenção atrás dela, ainda que em tom de brincadeira, inspirada nos versos Autopsicografia. Foi inevitável não me lembrar dos versos de Pessoa ao falar sobre essas questões que envolvem experiências pessoais que são convergidas, de alguma forma, através da arte, neste caso, em formato de ficção. Entendido ou não, o escritor preferiu responder de forma mais teórica, tratando do assunto num aspecto geral relacionada à essência do ofício. O que, de qualquer forma, não deixou de ser uma resposta plausível.

Sobre a escolha pela ficção, ele disse:

 

“Acho que é o gênero artístico em que mais me saio bem.”

 

O tratamento da linguagem em sua prosa é interessante. Sobretudo, o modo delicadamente metafórico utilizado em Divorcio ao falar sobre a desnudez da pele e da dor referente à perda de sua personagem, que irá retrabalhar sua estrutura emocional tentando canalizar suas feridas através de uma participação na corrida de São Silvestre (fato também em comum com o autor, que costuma participar das mesmas corridas). Ainda sim, seu tom não soa nada piegas, hermético e tampouco verborrágico, mesmo sustentando-se num drama em que o narrador encontra-se em extremo estado de desequilíbrio existencial.

 

“Acho que a linguagem é a ferramenta principal do escritor, sendo preciso buscar os melhores recursos e aplicá-los à questão discutida.” Completando: “Por sua vez, como a linguagem é limitada e muitas vezes incapaz de tratar com grande ênfase da questão, o autor precisa de habilidade para obter o máximo possível”

 

Você falou algo muito interessante em um de seus discursos relacionados à mania dos leitores e até mesmo dos críticos literários de tentarem buscar “o que o autor está querendo dizer em determinado trabalho”. E que, na verdade, o sentido da literatura, pelo que eu entendi, depende muito mais do esforço de quem o ler do que do próprio autor. Tudo isso me remeteu a um artigo, de Roland Barthes, do qual se explicita justamente sobre isso, “a morte do autor”. Na verdade, o leitor passa a se tornar o próprio autor do livro, já que a partir da sua subjetividade, da sua entrega e observação durante a leitura, ele mesmo pode captar coisas que, de fato, o próprio escritor não tinha examinado durante a produção. No caso, a obra de arte em si, num contexto geral, após a sua feitura, depende muito mais da experiência individual de quem a absorve, do que de um veredito, vamos dizer assim, dado ao próprio escritor. Poderia falar mais sobre isso?

Ricardo Lísias: Sem dúvida acho que o leitor precisa procurar os seus próprios sentidos dentro de um livro. O escritor não pode ser autoritário a ponto de achar que sua interpretação é a melhor possível para um livro. Cada um terá a sua interpretação, que certamente será baseada em sua história pessoal, preferências ideológicas e interesses. Acredito na liberdade, portanto.

Vejo que você é um dos poucos escritores que usa as redes sociais, não apenas para promover seus trabalhos, porém para expor suas indignações relacionadas aos problemas sociopolíticos e culturais de nosso país, e critica de forma elegante, sem explicitar nomes, o posicionamento insípido e demasiadamente ausente de certos escritores que preferem manter-se fora das discussões sociopolíticas e culturais do país, atitude contrária de notórios intelectuais de décadas passadas. Você acha que alguns escritores brasileiros sofrem da síndrome do medo de se expor politicamente? Ou é mais do que isso?

RL: Acho que é mais do que isso, embora seja isso também… Acho que atualmente a literatura brasileira contemporânea não resiste às mazelas da sociedade brasileira, mas as reproduz. Temos as classes mais privilegiadas extremamente predatórias e violentas, preocupadas com o próprio enriquecimento e não com o destino geral da sociedade brasileira. A maioria dos escritores vem dessa classe e acaba então repetindo seus hábitos. É uma pena, pois como você disse na sua pergunta, nem sempre foi assim no Brasil.

Eu tenho notado que o mercado editorial brasileiro tem crescido nos últimos anos (juntamente com os eventos e concursos/prêmios literários realizados no país), assim como o número de leitores, embora a educação continue lamentavelmente em sua mais que decadente precariedade. O interesse de fora também é notório relacionado à nossa literatura (visto, por exemplo, a edição da Granta, em 2012, de que você faz parte), embora uma grande parcela da população brasileira não tenha nem sequer conhecimento dos autores atuais de nossa prosa contemporânea. O que eu quero dizer é que embora haja um crescimento no número de leitores no Brasil, esses mesmos leitores têm tido mais interesse pela literatura de fora do que da nossa (ainda que esteja se exportando mais autores brasileiros em outros países, um fenômeno, a meu ver, um tanto quanto paradoxal). Com exceção dos clássicos e de nomes mais do que conhecidos como Chico Buarque e Jô Soares, por exemplo, muitos nem sequer conhecem o que se tem produzido nos últimos anos em termos de literatura brasileira. Sendo escritor e também professor universitário, como você analisa essa complexa questão?

RL: Acho que o problema é mais propriamente político e se deve à desvalorização do ensino brasileiro. Como autores, precisamos valorizar ao máximo o ensino e os professores, para que eles possam aos poucos levar aos alunos o interesse pela nossa literatura.

Na sua concepção, qual é o ponto positivo e negativo de nossa literatura brasileira?

RL: No momento atual, acho que o ponto negativo é o fato de que no geral a literatura brasileira deixou de resistir ao que há de pior na sociedade brasileira. Momentos positivos me parecem surgir aqui e ali com livro fortes como Manual da destruição, de Alexandre dal Farra.

Você já participou ou ministrou alguma oficina literária? Uma oficina pode construir ou somente lapidar um escritor? Qual a importância das oficinas para aqueles que aspiram uma carreira literária?

RL: Nunca participei, mas acho que é possível ensinar muita coisa do processo literário. Espero que elas continuem se multiplicando.

Qual foi o momento mais emblemático de sua vida ligado a um livro?

RL: Acho que foi a primeira vez que li Ulysses de James Joyce. Um livro que mexeu muito comigo.

Dentre os seus romances, novelas e contos publicados, existe algum a que você tenha uma afeição mais especial? Seja no ponto de vista estético, das dificuldades encontradas na feitura do trabalho, em seu amadurecimento como escritor ou mesmo na própria satisfação da realização de um determinado projeto. E por quê?

Cada um dos livros tem um valor especial para mim. Não consigo escolher um só, inclusive porque estou trabalhando com o conceito de “projeto literário”, o que acaba me dando a vontade de pensar em uma “obra” em um sentido mais amplo.