Para hoje, temos três poemas inéditos de Thiago Mattos, nascido em Petrópolis (RJ). Graduou-se em Letras (UFF) e doutorou-se em tradução literária (USP). Publicou Teu pai com uma pistola (Confraria do Vento, 2012, Festival International de Poésie de Trois-Rivières), Casa devastada (Confraria do Vento, 2014) e Solo: noturno a quatro vozes (Confraria do Vento, 2018, semifinalista do prêmio Oceanos). Atualmente, é professor no interior de Minas Gerais.


Buraco no mar

Advertiu-me o velho Cabral,
menino de orelhas estreitas,
que as coisas têm nome,
mas que a gente não tem boca.

Disse isso com voz pequena,
como um sumiço,
e era mesmo sob uma tarde quente que sumia,
apequenando-se passo a passo em direção ao mar frio do Recife.

Recife que me fechou os olhos
como se num abate,
passou-me a lâmina d’água pela garganta,
entre as cordas vocais, de ponta a ponta,
e dividiu-me em postas:
as partes moles para a terra seca,
as duras para o fogo fátuo,
os ossos, pouco firmes de si, para os cães emplumados.

O sangue se guardou em bacia de ágata,
um pano branco por cima
feito céu sem sol
cedendo pouco a pouco sob peso nenhum:
uma queimada viva espraia e coagula no linho
               — Vermelha,
                    quase eu.


Citólise

(para uma segunda edição de Casa devastada)

São os dias mortos
afogados no fundo da piscina
em que boia uma caravela de papel

Ali se afogou Marina
que me amou por 9 meses
e foi me enterrar em Dubai

Às margens da água
na relva verde vivo
outrora melada de vermelho
encontraram Adamastor
as quatro patas amputadas
nunca descobrimos por quem

Daquele jardim à esquerda colhi 3 rosas
presente de 90 anos para vovó Yara
Recebeu-me pensando que era o filho
despediu-se chamando-me de meu amor
amor que um caibro de telhado
e uma corda de jangadeiro
tiraram-lhe há 40 anos
talvez 5
já não se lembra

Percorrendo o caminho de pedra
chegará à sala de estar
tomada inteira pelo sofá emborrachado
em que sufocou papai
de infiltração pulmonar
dois dias depois de parar de fumar

Mesmo sofá em que eu e Penélope
nos sentávamos de mãos dadas
sem imaginar que naquelas vísceras
tão delicadamente recobertas de pele fresca
crescia um câncer e um tempo:
três meses, as macas,
o lençol estendido sobre o corpo absolvido

Gordurosa mancha sob o tapete da copa
se ainda
estás aí
exala o que guardas
ainda
de mim
e dela
e me deixa esquecer amanhã
o que não esquecerei nunca

Da cozinha se ouve a gaveta abrindo
Luís
amigo que me deu dinheiro e sentido
está pegando a faca do
pão
não hoje
não agora
mas há 15 anos
numa noite de 15 de outubro
que não podíamos supor ser a última
de uma vida tardia no nascimento
precoce na
repartida

A porta nos fundos da cozinha leva ao quintal
Por ela passou mamãe
voltando da maternidade
Deixou as chaves de casa sobre a geladeira
colocou uma muda de roupa na bolsa
e sumiu sob a chuva fria

Quando o sol nasce e estou fervendo leite para o café
gosto de pensar
não sem algum estorvo na garganta
que está viva no coração da terra
colhendo abóboras e dobrando a roupa lavada

À noite
sob o céu apagado
prefiro imaginar que morreu na estrada chuvosa
e ali foi enterrada
uma cruz que a mesma chuva talvez já tenha demolido

Saindo da cozinha e
contornando o quintal
volta-se à relva verde vivo
esta em que me deito
o coração palpitando contra a terra
e afogo meu nome.


Para García Lorca

Não devias ter medo das
salamandras mortas.
As unhas te violam,
varado contra o muro,
e lavam carne aos touros.
Umidamente te recolhem,
Umidamente minguam teus ombros corroídos de sal.
As cítaras quase recompõem
teus restos — sobre esferas de limão
e vidros de mariposas.
Os olhos é que não se cansam
(jamais se cansam),
e fitam uma lua.
Mãos decepadas anunciam um retorno.
O outono de sangue traz
azuis orvalhos sobre o amante de pó:
a viúva que dança
dança o tambor, não dança

o mar