Nos últimos tempos, no Brasil, felizmente acompanhamos uma retomada feroz de leituras da obra de James Joyce. Em parte, trata-se de um fenômeno social derivado do campo jurídico: a obra do autor irlandês entrou em domínio público em 2012, o que permitiu que editoras de todo o mundo, inclusive daqui, se vissem fora do jugo de Stephen Joyce, seu neto, e publicassem livremente seus livros. No caso brasileiro, há ainda alguns outros fatores que chamaram a atenção do grande público para esse autor, como a publicação de novas traduções de suas obras mais consagradas, em especial do Ulysses (1922).

Joyce é hoje, acima de tudo, um fenômeno cultural. Faz parte daquela classe dos modernistas que já viraram clássicos, que, na verdade, nos fizeram redefinir o que é um clássico. Para além desse estatuto, em terras tupiniquins, o autor sempre foi visto, em grande parte devido à tradução de Antônio Houaiss para o Ulysses, que, por suas escolhas rebuscadas, lhe consagrou uma imagem hermética que poderia ser somente desvendada por grandes cérebros. Não quero aqui reduzir Joyce; na verdade, quero enaltecer o leitor, que, acredito eu, pela nova onda de publicação de suas obras por aqui, se sentiu livre para ele mesmo tentar acessar o universo joyciano. Finn’s Hotel, um dos livros póstumos do autor, talvez seja, a partir de agora, mais uma dessas portas, quem sabe a mais sintética – e, ao mesmo tempo, abrangente.

Finn’s Hotel, devo dizer, não se apresenta como uma obra plenamente constituída. Nem deveria ser, afinal é material póstumo, feito a partir de manuscrito abandonado pelo autor. Essa suposta transição entre Ulysses e Finnegans Wake (1939), na minha visão, está mais para um resumo linguístico de toda a obra de Joyce, inclusive de volumes para os quais não se dá tanto valor, como Pomes Penyeach (1927). Vê-se o desejo de retrabalhar a língua inglesa, a língua do colonizador, para se adequar ao tema, à necessidade mítica irlandesa e até mesmo céltica. Ao mesmo tempo, a estrutura do livro, em que cada parte parece ser um misto de conto e poema em prosa, não deixa a narrativa de lado, ainda que seja uma narrativa incomum.

De qualquer modo, Finn’s Hotel traz consigo um número altíssimo de registros linguísticos e, por isso, estéticos de Joyce em sua época mais prolífica. Não se pode negar que, além de síntese da literatura joyciana, esse pequeno livro contém, em essência, o Finnegans Wake: lá está, por exemplo, Humphrey Chimpden Earwicker, ou H.C.E., ou o Homem Comum Enfim, seu “protagonista”. Também há uma primeira versão da carta de Anna Livia Plurabelle, um dos fragmentos mais notáveis da obra final de Joyce. Além de referências várias a Tristão e Isolda e outros elementos da cultura céltica, como bem apontado nos textos introdutórios da edição da Companhia das Letras, que são a “nota do tradutor”, no caso, Caetano Galindo, e duas introduções, de Danis Rose e Seamus Deane. O leitor notará que essa ascendência do Finnegans Wake é discutível, bem como a tese de que Finn’s Hotel é, na verdade, um esboço da obra seguinte. O fato é que, para nós, leitores, se constitui como uma obra parte, que pode ser lida em sua plenitude, não como apêndice de algo maior.

Apesar da sugestão de Finn’s Hotel como leitura introdutória a tudo que Joyce escreveu nesse apogeu criativo, repito: não é um livro qualquer, mesmo em questão simplesmente formal, propriamente linguística. Não se pode lê-lo como se lê uma receita de bolo; ainda é literatura. Além de ser literatura, é obra de James Joyce, o que talvez complique a vida de algumas pessoas, mas nada que não se supere.

Sempre me surpreendeu, no entanto, que nenhum estruturalista francês tenha ousado realizar uma análise completa de estruturas na obra de Joyce, que causaria inveja a qualquer lógico ou matemático. A provável razão – assim, bem levianamente – deve ser o fato de que Joyce está escrito em inglês, em inglês bem irlandês, ou seja, bem longe do francês dos acadêmicos parisienses e de outras línguas românicas – a não ser, em certos momentos, do latim, por razões muito joycianas. Todo texto escrito por Joyce é compreensível, mas realmente difícil de ser explicado, ainda mais cientificamente.

Nos últimos tempos, também tenho me lembrado constantemente de uma pergunta engraçada que um amigo – daqueles que vos escreve nesta mesma página da rede mundial de computadores – faz para aqueles que também leem romances aos montes como ele: “Joyce ou Proust?” Segundo ele, a resposta delimita muito bem dois tipos de leitores. Para mim, deve ser só mais uma daquelas decisões sem cabimento, como “Chico ou Caetano?” Caso as categorias de leitor sejam verdadeiras, acredito que Finn’s Hotel, por ser um cápsula de um componente bem mais poderoso, seja daqueles livros que afaste os proustianos de Joyce e aproxime mais os joycianos de seu adorado escritor. Ou justamente o contrário. Seguimos tentando.