Entre os dias 9 e 16 de abril, em 45 cidades brasileiras, foi tempo de Cinema francês. Cada vez maior, a quinta edição do Festival Varilux trouxe este ano para o país importantes nomes da cinematografia francesa, como a atriz Isabelle Huppert (estrela do pôster desse ano), apresentando os dois filmes que protagoniza, além do diretor Jean-Pierre Jeunet, do encantador O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), que trouxe sua nova obra, Uma Viagem Extraordinária, e apresentou duas masterclasses, na FAAP (SP) e UFRJ (Rio).
Não conseguindo ver tantos filmes como no ano passado, quando vi sete obras, esse ano não será possível fazer aqui um apanhado geral sobre a produção francesa. Porém, uma das belezas desse festival é que a maioria dos seus filmes encontra boa distribuição ao longo do ano (o Cinema francês sempre foi, depois do americano, o que tem melhor distribuição no país).
Vi apenas um filme; um que já foi suficiente para reiterar meu amor por esse Festival sempre excelente: Eu, Mamãe e os Meninos é a comédia escrita, dirigida e protagonizada por Guillaume Gallienne, que arrebatou cinco prêmios César nesse ano, incluindo o principal, em que competia com o novo Asghar Farhardi, O Passado, o novo de Roman Polanski, A Pele de Vênus, e o polêmico Azul é a Cor mais Quente, de Abdellatif Kachiche. Soma-se a essa conta os dois prêmios especiais que já havia levado em Cannes.
O homem por trás do sucesso, Guillaume Gallienne, é mais um talentoso artista saído de La Comédie-Française, o maravilhoso teatro estatal e centro de formação de atores advindo do século XVII e que tem se expandido para o Cinema com nomes relevantes, como Denis Podalydès, de Vocês Ainda Não Viram Nada (Alain Resnais, 2012).
Guillaume abraça elementos cênicos muito habilidosos e diversos para contar a história autobiográfica de um jovem francês que, pelos trejeitos e íntima ligação com a mãe, é desde a infância considerado homossexual – sem que isso tenha facilitado muito sua vida. Na narrativa, a encenação teatral em que o rapaz conta essa história é entrecortada por reconstituições dos episódios narrados. Assim, somos espectadores de duas narrativas: Guillaume contando sua história e Guillaume vivendo sua história.
Mas para além disso, a inovação dessa brincadeira está na utilização de um elemento já batido das comédias, usado à saturação por Eddie Murphy e Martin Laurence, por exemplo. O ator interpreta múltiplos papéis: Guillaume é ele mesmo, mas, devidamente caracterizado, também encarna sua mãe. Há ainda uma terceira e hilária incursão ficcional, passada na imaginação pródiga do protagonista, em que Guillaume é Sissi (Elizabeth da Áustria) e a arquiduquesa Sophie (sua sogra e tia), personagens reais com histórias deveras dramáticas, muito populares na Europa.
Mas Eu, Mamãe e os Meninos é, sobretudo, uma fabulosa comédia sobre desenvolvimento sexual, e a complexidade de sua narrativa, feita em muitas camadas, é reflexo da profundidade de seu tema. Numa história em que o protagonista enfrenta suas questões sexuais a fim de confirmar sua possível homossexualidade, o ato de Guillaume transvestir-se de sua mãe é simbólico, caindo como uma luva ao intento maior, que é a discussão da sexualidade
Com sensibilidade e engenho, mesmo que vez ou outra utilize-se do pastiche para fazer rir (como quando Guillaume, num spa, faz um enema pelas mãos da linda Diane Krueger e depois diz ter sido “deflorado”), a destreza do autor constrói uma trama inteligente e até mesmo sutil.
A madeleine proustiana de Guillaume é a lembrança de infância de sua mãe chamando os três filhos para o jantar: “Meninos e Guillaume, à mesa!” – fazendo assim uma clara distinção sobre a condição desse último. Mas que condição é essa? A partir de certa idade, o próprio menino procura saber. Começa percebendo que não apenas é muito ligado à sua mãe, uma senhora intempestiva e um pouco alienada, como ambos se parecem muito – são ótimas as situações em que Guillaume engana a cozinheira, a avó e até o pai, passando pela mamma.
Num segundo momento, o personagem identifica-se com o gênero feminino e começa a emular o comportamento das mulheres que lhe são mais interessantes: tias, amigas, etc. Mas e sua relação com o mesmo sexo? Como de costume, Guillaume tem uma péssima ligação com o pai, que não aceita sua afetação afeminada, e seus irmãos estão sempre distantes. Quando, no clube, interessa-se por um rapaz, termina com o coração partido. Decepciona-se mais uma vez na Inglaterra, onde vai para um colégio interno (e faz piadas maravilhosas com o jeito de falar britânico). Quase se envolve numa orgia ao conhecer um cara num clube gay, mas foge na hora H. Se assusta com o tamanho do pênis de um outro homem, que chama de cavalo. Assim, seus contatos homossexuais nunca se dão de fato e ficam bem longe de partirem para níveis mais profundos.
Quase no final, uma surpresa: Guillaume descobre-se heterossexual. Na festa de uma amiga conhece Amandine, por quem se apaixona de imediato. A partir daí, sua maior dificuldade, portanto, não é “sair do armário”, como diz o ditado sobre aquele que assume sua homossexualidade, mas ficar num armário de que todos insistem em lhe tirar. Guillaume tem então o desafio de encarar sua mãe: “Mãe, decidi escrever uma peça sobre um garoto que aprende a aceitar sua heterossexualidade numa família que decidiu que ele era homossexual”. Uma pancada, um gol de letra, uma fala maravilhosa.
Assim, o autor/ator/diretor Guillaume aborda a sexualidade com o nível de complexidade em que ela merece ser retratada. À certa altura, conversando com uma tia que diz adorar a Parada Gay: “Eles [os gays] são tão artísticos. São todos antiquários ou floristas”. Com humor e criatividade, questiona e supera preconceitos e derruba estereótipos historicamente construídos sobre as questões de gênero. Uma conversa honesta com a(s) plateia(s), como poucas vezes se viu.
Esse rapaz, que pela distinção feita pela mãe desde a infância chegou a sentir-se menina (“Mas eu não sou homo, eu sou sua filha!”), e que durante toda a vida buscou respostas às inquietações encarando com coragem suas questões sexuais (coisa que tantos sufocam, invariavelmente estourando em preconceito e homofobia), é surpreendido pela conclusão madura de que sua feminilidade não lhe faz, necessariamente, gay – e se fizesse, ele também parece estar pronto para assim aceitar. Diante da revelação, a mãe pede uma “comprovação” de sua heterossexualidade, em termos de porcentagem: “Mãe, não é uma questão de porcentagem” – responde um fortalecido Guillaume.
Esse filme torna-se, assim, quase uma ode à Jung, o psicólogo do conceito de animus/animas, que compreende que todos temos uma faceta masculina e outra feminina. Além disso, é uma das poucas obras que mesmo no escracho da comédia (uma comédia boa, que nos tira muitas gargalhadas, vale ressaltar), trabalha seu tema com sutileza, maturidade e sobretudo, honestidade.
Ao fim e ao cabo, Guillaume percebe que o mal de sua mãe foi transferir a ele suas inseguranças, sobretudo as de abandono. O garoto cresce, enfrenta seu medo, monta no cavalo (quem assistir entenderá), enfim, toma as rédeas da sua vida. Em outras palavras, se me permitem a metáfora direto do túnel do tempo, Guillaume conclui, tal qual a velha música de Pepeu Gomes1, que “ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino…”.
https://www.youtube.com/watch?v=m-eXbYYJ8mk
Infelizmente, este ano não consegui ver nenhum filme do festival, mas o que me consola (um pouco, apenas), como você mesmo disse, é saber que vários desses filmes serão distribuídos ao longo do ano.
Lendo esta crítica, vi que perdi um bom filme. Gosto muito das comédias francesas porque elas sempre trazem um convite à reflexão além do humor. Espero conseguir ver ‘Les Garçons et Guillaume, à Table’ logo que possível…
Abs, Livro Lab
Ótima crítica para um filme fantástico. Parabéns!