Em 2010, quando David O. Russell ressurgiu com O Vencedor, um drama familiar tão verossímil e bem construído, pensei em fazer dele meu diretor vivo favorito. Passados quatro anos, três filmes e 25 indicações ao Oscar, desisto dessa ideia. O. Russell provou-se especialista em montar variações do mesmo filme, contando muitas vezes com os mesmos atores. Trapaça, seu recorde pessoal de 10 indicações ao Oscar, comprova isso, além de mostrar como Hollywood é ensimesmada.
O glutão e trapaceiro Irving Rosenfeld (Christian Bale) vive da venda de obras de arte falsas e outros golpes, escorado em sua lavanderia de fachada. Ao conhecer a talentosa Sydney Prosser (Amy Adams, mais sexy do que nunca com seu falso sotaque britânico), seus negócios se potencializam, enganando centenas de pequenos gananciosos e endividados num esquema parecido com pirâmide financeira. Presos em investigação do agente Richie Di Maso (Bradley Cooper), a dupla decide colaborar com o FBI na captura de políticos corruptos, em troca da liberdade. Em tom humorístico, a empreitada muitas vezes descamba no jogo de ciúmes e intrigas familiares, uma das marcas do diretor, especialmente quando a mulher de Irving, Rosalyn (Jennifer Lawrence), envolve-se na trama.
Existe valor na obra de Russell por dinamizar de forma tão eficaz essa longa história; para isso, utiliza sua câmera solta, ágil, diálogos interessantes, muitas vezes certeiros, e bons coadjuvantes, como Jeremy Renner, Louis C.K. e Robert De Niro. Para os que acompanham a carreira do diretor – e sobretudo para os ainda indignados com o estrondoso e imerecido sucesso de O Lado Bom da Vida –, é fácil notar vários elementos que se repetem, revelando um estilo de criatividade requentada que, inexplicavelmente, tem rendido estrondoso reconhecimento de seus pares.

Dos seis personagens principais, apenas Jeremy Renner não havia trabalhado com o diretor, e curiosamente é ele quem apresenta o melhor desempenho, fazendo o político que flerta com a corrupção e com a máfia pelo bem de sua comunidade. Já a reconhecida parceria com Bradley Cooper e Jennifer Lawrence, que rendeu o Oscar à atriz, é retomada em papéis que, vamos combinar, são apenas leves variações do projeto anterior.
Em Trapaça o período histórico é diferente, trata-se de um filme ambientado nos anos 70, com direito a calça boca de sino, bobes e mousse no cabelo. Rosalyn, porém, a esposa que Irving trai com a nova parceira, Sydney, é tão mentalmente perturbada quanto a premiada Tiffany de O Lado Bom…, e alguns de seus rompantes de fúria (como quando canta Live and Let Die, de Paul McCarntney, enquanto faxina a casa com luvas de lavar louça) são muito parecidos com cenas já vistas. Nova queridinha de Hollywood, Jennifer tem chances reais de levar o Oscar de Coadjuvante, vencendo a visceral performance de Lupita Nyong’o em 12 Anos de Escravidão. Uma pena.
Bradley tem atraído atenção por certa maturidade, e talvez O. Russell consiga extrair seu melhor. Ainda assim, me parece que seu melhor é muito limitado. Amy Adams e Christian Bale, os verdadeiros protagonistas, fazem um bom trabalho. Bale engordou 18 quilos para viver Irving, mas sua atuação é ao mesmo tempo uma homenagem e uma versão de Robert De Niro mais jovem, nos tempos de Os Bons Companheiros (1990, de Martin Scorsese), com os trejeitos faciais e tudo o mais. Já Amy emagreceu alguns quilos para sua sexy Sidney e seria bom ver uma estrela tão jovem, porém madura, ganhar o prêmio de Atriz desse ano (concorrendo mais diretamente com Cate Blanchett, por Blue Jasmine, de Woody Allen).
Nesse novo filme de Russell, há uma boa trilha sonora, que rememora as melhores músicas do período. Figurino, maquiagem e cabelos são praticamente caricaturas, assumindo também a função humorística, mas vejo que mais não se poderia pedir de um filme dos anos 70, com todas aquelas coisas ridículas.
Assim, a estrela do pragmático e um tanto quanto chato1 David O. Russell continua brilhando na terra do Cinema, com filmes que muitas vezes não são bons, apenas propagandeados como tais.
http://www.youtube.com/watch?v=YwpdoUcocMA
- Leia histórias de bastidores do polêmico diretor de Trapaça, incluindo troca de socos com George Clooney e xingamento a atriz no set, em Época, n° 818, de 3 de fevereiro de 2014, reportagem de Luis Antônio Giron e Marcelo Bernardes ↩
“”om filmes que muitas vezes não são bons, apenas propagandeados como tais.” Foi exatamente a impressão que tive desse filme.
Acho curioso que você citou tantas vezes essa repetição de certos elementos na obra do Russell e como único exemplo falou sobre a utilização dos mesmos atores. Imagina uma crítica de Um corpo que cai que dissesse “o velho Hitchcock está se mostrando cada vez mais sem criatividade, como se pode ver nesta quarta parceria com o ator James Stewart”. Repetir o elenco é uma marca de muitos diretores e normalmente significa confiança mútua e um bom trabalho em equipe. São diretores que tiram o melhor de seus atores e atores que encontram os seus melhores papéis em suas mãos.
Acho que faltou na sua crítica um esforço maior em sustentar a sua tese de que esse filme é uma repetição do trabalho anterior. Quais temas se repetem? E mesmo que ele estivesse se focando em um mesmo tema, quantos autores, cineastas ou escritores não estão sempre tentando resolver uma mesma questão em todas as suas obras? Nesse caso, acho que a direção do Russell está cada vez mais segura e inventiva. Difícil sustentar uma história com tanto dinamismo, como você mesmo disse. E ao contrário do trabalho anterior, ele não cai na pieguice, e também não resolve a trama numa enorme exposição, como foi aquela cena em que a grande aposta é combinada ao fim do Lado bom da vida.