No sábado passado, dia 28 de Março, chegou às livrarias do Brasil “Leite Derramado”, o novo livro do compositor, cantor e escritor carioca Chico Buarque. Enquanto noticias chegavam sobre o livro, a sinopse foi divulgada no dia do lançamento do livro, antes disso pouco detalhes eram revelados.

As lembranças entrecortadas e lacunas na memória, a construção de uma narrativa sob o efeito da morfina. Eulálio D’Assumpção é um homem muito velho, centenário, que está em um leito de hospital relembrando sua vida e contando a história de sua nobre família, desde os tempos da corte real no Brasil.

Neste novo romance, Chico Buarque opta mais uma vez um narrador em primeira pessoa para conduzir sua história. Seguimos os pensamentos presentes, as reminiscências e impressões de um velho moribundo em uma cama de hospital, sem sabermos quando está num monólogo ou descrevendo suas memórias às pessoas que passam pelo seu quarto. Pessoas essas que não reconhece em grande parte, pode ser uma enfermeira ou a sua filha, que servem de ouvintes ou interlocutoras de suas recordações sem ordem cronológica – parando, voltando e se perdendo no tempo (isso remete a canção “O Velho Francisco”)

Eulálio é o retrato de uma “elite em crise”, vivendo do sobrenome que tem e perdendo cada vez mais espaço na sociedade de alto escalão (devido a deslizes próprios de seus descendentes). Tal espaço é descrito toda vez que o velho considera o tratamento do lugar onde está inapropriado para uma pessoa de sua classe. Ainda sustentando essa superioridade afirma que seu avô libertara os negros e os levara de volta para a África. Em diversos pontos a obra o racismo figura como personagem chave e ironicamente os negros tangem pela vida de Eulálio (inclusive o amor de sua vida é a mulata Matilde, “a mais moreninha das sete irmãs”). Em uma passagem bem curiosa, e também bem irônica, Eulálio lembra uma época em que gostaria de enrabar um escravo com quem mantinha amizade desde a infância (outra evidência de sua sensação de superioridade). Basta saber que todos esses detalhes jogados na narrativa servem para consolidar o intuito da história: a miscigenação brasileira.

Por se tratar da narrativa de um moribundo, muitas personagens não têm descrições completas e todas são risíveis (em vista do que é narrado). O que importa no romance é como construir o personagem principal através do que ele diz sobre o ambiente, sobre o passado, sobre todos e pelo pouco do que fala de si mesmo (exaltando traços de sua personalidade, muitas vezes contraditório em suas opiniões, tentando mostrar humildade, mas apenas exalando arrogância). Os sentimentos de Eulálio são rasos, somente os descritos com uma cor alaranjada é que são mais profundos – e verdadeiros.

Nem parei para pensar de onde vinha a minha raiva repentina, só senti que era alaranjada a raiva cega que tive da alegria dela.

Os períodos históricos não são explorados também, para retratar o Brasil e o Rio de Janeiro o narrador usa o futebol, as tecnologias, as religiões, a criminalidade e sobre a influência de sua família na política.

Quanto ao título, parece bem simples que seja uma alusão ao saudosismo e irreversível fim de Eulálio, há ambigüidade: apesar de ter gozado o bom da vida graças ao nome que carrega, o personagem principal não tem um nicho familiar, foi criado por uma babá e espelha-se na história de sua estirpe para tentar enriquecer a sua vida desmamada e sem simplicidades (como os paradoxos de ser um bon vivant mulherengo que morre de ciúmes da sua mulher). Todavia, a interpretação do antigo ditado fica por conta da última imagem de Matilde que Eulálio se recorda: amamentando a filha dos dois.

De linguagem refinada, irônica, paradoxal e biográfica, temos uma obra que passará pelos olhos de leitores recordando Machado de Assis com seu Brás Cubas e com Bentinho, mas acontece que além de um drama machadiano, temos uma obra buarqueana que flerta com sua vida pessoal e sua obra.

BUARQUE, Chico. Leite Derramado. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009. 195 págs. Preço sugerido: R$28,00

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