“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.”

Como pagamento de uma dívida, uma amiga minha prometeu devolver o valor restante em livros. Quando disse que os livros estavam em mãos, comentei algo sobre Demian e ela, atônita, perguntou se eu o havia lido. Consenti que sim e logo veio o questionamento se eu queria o livro apenas para ter. Refleti por alguns instantes e tentei perceber se realmente era verdade, se eu o leria outra vez. A resposta veio em menos de uma semana (sem aquela obrigação de prazo para devolver), reli o livro com grato prazer.

Essa obra de Hermann Hesse constitui, de acordo com muitos, numa trilogia que acompanha três fases da vida de um ser humano: Sidarta como a busca espiritual (ou a infância), O Lobo da Estepe como o confronto da velhice e Demian como o descobrimento de si mesmo através da rebelião às convenções morais e familiares.

Fortemente influenciado por Nietzsche; diversas vezes vemos o personagem principal, Emil Sinclair, dividir o mundo entre o luminoso e o obscuro, entre o bem e o mal. Até que um dia ele conhece Max Demian que apresenta o mundo obscuro através de uma alusão a marca de Caim (em diversos pontos da obra essas alusões, comparações e metáforas religiosas brotam explicitamente nas páginas). Nietzsche é citado pelo próprio protagonista, mas também, de forma silenciosa, compõe na obra umas de suas teorias mais famosas, a do eterno retorno, quando diversas vezes vemos fatos se repetirem na vida de Sinclair.

Outra notável parte da obra é influenciada por estudos do “inconsciente” de Jung. Sinclair confronta sonhos que o aterrorizam durante anos com figuras misteriosas, sinais e sensações irretocáveis. Os sonhos tornam-se peça chave para o total entendimento de Sinclair sobre Demian. Apesar dessas libertações é possível enxergar em Sinclair uma idealização gigantesca com a figura feminina. Em diversos momentos afirma nunca ter se deitado com uma mulher ou mesmo ter tido o desejo sem ser com a ideal. Até confrontar-se com Beatrice (nome dado por ele mesmo), um exemplo de amor platônico.

Você não deve entregar-se a desejos nos quais não acredita. Sei que deseja. Você tem que abandonar esses desejos ou desejá-los de verdade e totalmente. Quando chegar a pedir tendo em si a plena segurança de alcançar seu desejo, a demanda e a satisfação coincidirão no mesmo instante. Mas você deseja e se reprova, temeroso de seus desejos. Tem que dominar tudo isso.

Demian é um romance sobre a formação de caráter, uma busca infinita sobre o eu interior, sobre o que se é realmente, através dos diversos dilemas que aparecem pela vida. Diferente de Sidarta que apresenta uma resolução espiritual, aqui não é o espírito que sossega com as revelações, mas sim a consciência, os pensamentos, o sempre inquietante inconsciente que tenta nos revelar o que realmente somos, mas de fato o ignoramos. E se pudéssemos expor a beleza de nossos sonhos mais íntimos aos outros, assim como Sinclair a Demian, possivelmente descobriríamos nós mesmos mais cedo.


HESSE
. Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. 3ª Edição. 188 páginas. Preço sugerido: R$ 33,00.

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