“A pessoa de Homero está para sempre imersa nas trevas impenetráveis da lenda. Ignoramos quando viveu; não sabemos que terra privilegiada lhe ouviu os primeiros vagidos (…) Venerandas tradições representavam-no como um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação de seus poemas”. (Augusto Magne)

Homero é considerado um dos pais da literatura ocidental- se não o pai em sim- mas a verdade é que é uma figura controversa: alguns sustentam que, talvez, o autor da Ilíada e da Odisséia não seja um só indivíduo, mas uma ficção que acoberta centenas ou milhares de indivíduos, de trovadores de uma tradição épica já perdida. Ou ainda talvez ele tenha existido mas não criou os poemas que lhe são atribuídos: selecionou as versões e os catalogou, uma tarefa no mínimo tão árdua quanto a de os criar.

Em o ‘Dossiê H’ o escritor Ismal Kadaré transporta dois homeristas- estudiosos do poeta cego e sua obra- irlandeses para sua Albânia em busca da resposta para o enigma de Homero; na primeira metade do século XX, quando se passa a ação do livro, a Albânia era um lugar extremamente singular, em que o começo de uma modernidade imiscuia-se e transmutava tradições milenares e a poesia época e o trovadorismo davam lá seus últimos suspiros.

Munidos de um ‘magnetofone’- um esboço de gravador de som- e certa ingenuidade acadêmica os dois homeristas acabam sendo envolvidos, sem saber, no milenar conflito sérvio-albanes, em intrigas políticas e até mesmo nas fantasias eróticas de mulheres provincianas, enquanto tentam registrar as alterações sofridas pelos últimos épicos a cada vez que são cantados, para que possam reconstruir o esforço homérico.

Não cabe aqui um spoiler, contando o resultado. Basta-me escrever que mesmo não estando entre as principais obras de Kadaré- e com razão quando pensamos em ‘Abril Despedaçado’ ou ‘Concerto no fim do Inverno’- ‘O Dossiê H’ é um livro muito bom, que mostra de modo breve e conciso o porque de Marguerite Yourcenar ter dito que a literatura albanesa supera, hoje, a francesa, mesmo que o seu único autor com um reconhecimento universal seja Kadaré- cuja escrita consegue misturar beleza, tristeza e mesmo humor de modo que o resultado final é sempre algo singular.

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