Sou fã de epígrafes. Para mim elas funcionam como uma espécie de making of da obra literária, são indicações dos passos percorridos pelo autor na construção da trama que você está desfrutando naquele momento, serve inclusive como um guia de curiosos que porventura queiram palmilhar o tortuoso caminho do criador como quem se interessar um bocadinho sobre aquela citação a ponto de querer conferir de onde ela veio e quem a escreveu. Enfim, é um recurso que enriquece e, de quebra, é divertido.

Nancy Huston não só tem ótimas epígrafes como também escreveu frases que dão ótimas epígrafes. A pretensão de seu livro A espécie fabuladora é ambiciosa: ela procura relacionar a história humana, de modo panorâmico, às fábulas, histórias, ficções, tramas, enredos, romances etc. que esses mesmos homens criaram. Essa pretensão, no entanto, não se restringe ao campo da Literatura, e sim da criação, escrita ou não, calcada na própria tradição e herança cultural que se acumula e é enriquecida desde que o homem é homem. Ou seja, desde que se tornou consciente de sua existência, de sua finitude e de sua própria consciência.

Ela começa tudo isso com uma pergunta que lhe foi dirigida por uma presidiária durante as discussões do clube de leitura do qual ela participava em uma penitenciária: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”. Essa pergunta pode até parecer óbvia, mas se torna difícil responde-la sem fôlego suficiente para adentrar nos meandros misteriosos da ficção na história da humanidade.

Um dos pontos-chave da obra de Huston é justamente compreender como o desenvolvimento da consciência de si próprio e do mundo ao seu redor, fizeram o homem se compreender melhor e a criar fábulas e histórias que lhe ajudassem a compreender o porquê das coisas. Essa é uma prática que, embora fosse mais forte antigamente, em tempos em que a ciência não se tinha ocupado de explicar e teorizar o mundo, ainda continua, às vezes discreta ou até mesmo despercebida.

A literatura conseguiu ao longo da história da humanidade cumprir esse papel de dar sentido às coisas, conferindo-lhes significado no cotidiano e ressignificando-as conforme a necessidade das sociedades. Essa é uma constatação que pode até não ser epifânica, mas que Nancy consegue sintetizar em pouco mais de 140 páginas com uma sensibilidade e uma desenvoltura deliciosas.

Justamente por não ser uma obra prolixa, nem querer ser um tratado filosófico ou um estudo historiográfico sobre a experiência humana, mas sim, a exemplo do que está estampado na edição brasileira, de se tratar de “Um breve estudo sobre a humanidade”; a autora acaba deixando ganchos muitíssimo interessantes, os quais, em minha opinião, mereciam algum aprofundamento que poderia enriquecer muito o livro. Isso não é necessariamente um defeito, já que ela não se propôs a tal empreitada.

Contudo, é fabuloso (desculpem, não resisti ao trocadilho) como nesse vôo panorâmico ela consegue demonstrar uma perspicácia assombrosa em reconhecer as ficções que os humanos constroem para justificarem seus atos e os desdobramentos que a eles se seguem. Nancy passeia pelos diferentes tempos históricos, da época das cavernas até o terceiro Reich, dos conflitos da faixa de Gaza até o Antigo Egito, tentando entender de onde vem essa curiosa prática de criação ficcional que nós humanos insistimos em instilar em cada hora de nosso dia.

O livro conquista pela forma como conduz a investigação da fabulação humana, partindo de conceitos básicos, tais como nomes de pessoas e de lugares, apontando a história subjacente que eles têm bem como a ficção que os envolve; partindo até temas mais abrangentes, como religião, crenças, constituição do eu, as Fábulas Guerreiras, as Fábulas Íntimas, etc.

Com isso a autora mostra como as criações ficcionais comportam-se de modo muito engraçado, pois mantém um pé na abstração e outra no mundo material, já que, mesmo não existindo fisicamente (os personagens, a trama, o conflito, a ambientação etc.) elas produzem efeitos concretíssimos, que vão desde conformação existencial e conforto religioso até justificação de guerras e massacres.

A autora consegue, em um livro breve como esse, mergulhar na “natureza” humana e buscar na raiz ficcional de nossos pensamentos o poder avassalador das convicções humanas e de sua capacidade de levar a cabo as suas crenças e suas ficções e transformar a realidade.

A espécie fabuladora deixa a impressão de ser a ponta do iceberg, que muito mais coisas se escondem sobre a superfície misteriosa de suas páginas. Espero que Nancy Huston também pense assim e continue exercendo a atividade que define a sua espécie: a capacidade (e a necessidade) de fabular.