Acredito que Samuel Beckett (1906-1989) é uma figura conhecida da maioria dos leitores desta página, o que me leva a evitar grandes descrições de sua biografia e sua trajetória literária. Todos o relacionamos imediatamente ao chamado Teatro do Absurdo, termo cunhado pelo crítico Martin Esslin. Sua peça mais lembrada deve ser Esperando Godot. O que a maioria talvez não saiba é que sua obra é muito mais extensa e variada, desconhecida do público brasileiro, que não tem acesso a muitas traduções de escritos de Beckett. O irlandês para além do nonsense ainda precisa ser descoberto.

Seu primeiro romance, Murphy (1938), é desses escritos menos lidos. Foi lançado quando Beckett tinha apenas 32 anos, o que, a meu ver, ainda o configurava como um jovem artista. Antes disso, havia publicado somente algumas narrativas curtas. Não se pode dizer, entretanto, que nesse texto temos o mesmo Beckett que seria lido depois nos romances de sua trilogia (Molloy, Malone morre e O inominável) ou mesmo de sua dramaturgia posterior.

É possível perceber, apesar das diferenças, que a temática da solidão já estava presente em Murphy – como Nuno Ramos, no posfácio do romance, afirma –, porém ainda resiste um tom satírico característico da literatura irlandesa das primeiras décadas do século XX. A opus magna que representa essa sátira seria, é claro, o Ulysses (1922), de James Joyce, evidente (ou ainda: gritante) e grande sombra por trás de Murphy. Considerando-se que não deve ter sido fácil escrever qualquer coisa depois do épico joyciano, acredito que deve ter sido quase inevitável para Beckett assumir que sim, fora cativado pela estética de seu conterrâneo. Alguns anos antes, ele havia encontrado Joyce e, inclusive, escrito um ensaio em defesa de sua literatura

Apesar das semelhanças com o Ulysses, não podemos resumir Murphy a uma simples cópia. Murphy, o protagonista, não parece ter grandes objetivos. Mesmo quando se muda para Londres, pensa somente em seu amor por Celia, sua namorada prostituta que, aparentemente, não mantém a reciprocidade amorosa. Nenhum de seus conhecidos parece ter uma relação realmente próxima e afetiva com ele. Ele é um vagabundo errante na visão de todos, mas, como Stephen Dedalus, personagem em O retrato do artista quando jovem e no Ulysses, carrega dentro de si toda uma metafísica que almeja uma completude. Joyce cria uma macroestrutura a partir de Dedalus em O retrato, mas Beckett, em Murphy, parece se utilizar da narrativa à Joyce para manter seu protagonista em uma microestrutura, em uma deformação da metafísica. Enquanto Stephen Dedalus tem Dublin e todo o hipertexto da história mundial às suas mãos para crescer para fora de si, Murphy mantém suas referências culturais como intertexto, como citação que não descola da escritura de sua vida e mantêm-se as lacunas desconexas.

Não que Murphy seja pedante, como Dedalus parece ser às vezes no Ulysses; ele apenas transparece mais a falta de sentido da alteridade, assim como as personagens beckettianas que o sucederam. Há somente a falta de comunicação, ainda que todos pareçam estar ao redor de Murphy. Nesse contexto, o sótão em que reside no hospital que o aceita como empregado se configura mais como um cárcere da não-existência do que como um refúgio voluntário. Murphy, assim, surge como prelúdio dos romances beckettianos a serem escritos anos depois, mostrando-se como uma tentativa de se rir da memória da tragédia humana (a Segunda Guerra Mundial, no caso), transformá-la em comédia humana, mas sem manter a racionalidade estabelecida anos antes. Beckett nos apresenta um deslocado, alguém que sai da Dublin joyciana e busca ironicamente na Londres pós-guerra um lugar para si, no caso, um hospício.