As pendengas que rondam o debate da obra por si mesma e da obra integrada a seu contexto histórico não são poucas nem são de hoje. Apesar de, como historiador, eu pender bem mais para a segunda opção, eu reconheço que a obra tem um valor intrínseco enquanto construção intelectual e literária. Não quero atrair pedradas nem cometer digressões maiores, até porque, justamente por causa da minha formação, piso em ovos ao falar especificamente do campo da literatura.

Deixe-me explicar porque comecei dessa forma: não foi para causar polêmica nem nada, mas sim porque ao ler Irmãos, me pus a pensar sobre até que ponto uma obra está isolada ou minimamente constituída intrinsecamente; e que tipo de leitura seria possível fazer a partir da exploração de cada um dos lados desse debate.

OK, vamos por partes: Irmãos, livro escrito pelo chinês Yu Hua, conta a história de dois irmãos que viveram, ainda crianças, os eventos da Revolução Cultural Chinesa e cujas trajetórias perpassam o tempo até o contexto mais recente, marcado pela abertura crescente, porém gradual da China ao capitalismo. Li Carequinha e Song Gang perdem, respectivamente, pai e mãe, sendo que seus pais “sobreviventes” se unem e eles passam a ser irmãos.

Li Carequinha faz as vezes de malandro, mais dado a arroubos e besteiras, intempestivo e com iniciativa; Song Gang é justamente o contrário: é recatado, tímido e acanhado em todos os sentidos, sendo por conta disso, mais casto que o irmão. Com a ascensão da Revolução Cultural Chinesa, o pai dos dois é destituído de seus bens e espancado até a morte por soldados do governo.

A mãe dos dois, debilitada por uma doença e pelo choque da morte de seu segundo marido, cria seus filhos com dureza e se encarrega de dar-lhes condições mínimas de subsistência, morrendo assim que os dois meninos chegam a juventude. Song Gang e Li Carequinha são, a partir desse evento, obrigados a trilhar caminhos diversos, que se aproximam e se distanciam, enfrentando cada qual suas agruras e obstáculos.

A estrutura da história se assemelha bastante ao livro A montanha e o rio, do também chinês Da Chen, embora as obras se constituam a partir de perspectivas diferentes, que irei explorar mais a frente.

O livro tem altos e baixos, acertos e falhas. A infância dos dois meninos é magistral, Yu Hua consegue adentrar no universo infantil com talento e graça, deixando nas entrelinhas um pano de fundo histórico identificável e vinculado a história dos dois.

Porém, conforme a narrativa segue e os dois meninos crescem, o contexto histórico vai se aproximando da atualidade, e Yu Hua se volta mais para a trajetória individual dos dois, deixando-os um tanto descolados dos eventos históricos mais abrangentes. Nesse ponto, mais ou menos na metade do livro, fiquei pensando em como esse livro estava sendo aclamado e Yu Hua já tinha até ganhado o James Joyce Foundation Award (por outro livro seu, Viver), se ele versava sobre detalhes tão específicos e menos sobre a História, a natureza, os dilemas ou a trajetória humana como um todo. Não me parecia ser algo tão grandioso (embora o livro esteja longe de ruim) quanto as opiniões pareciam querer imputar-lhe.

Foi então que o contexto histórico do autor e de sua obra me ajudaram a compreender o valor que aquele livro tinha, que extravasava seu sentido intrínseco e ajudava a compreender de que forma ele “se comportava” em seu habitat histórico (que fiquei conhecendo a partir desse site aqui). Yu Hua mora até hoje na China e sua Literatura encontra-se balizada por dois fatores principais: a “necessidade” de estabelecer críticas e questionamentos a sua realidade, para atrair a atenção do público e crítica além-China; ao mesmo tempo em que ele precisa fazer malabarismos semânticos para driblar a censura e as imposições do governo chinês.

Levando em consideração esses fatos, pode-se entender que Yu Hua realmente trilhou uma estreita senda, que, ao contrário de Da Chen, que deixou a China; foi construída dentro dos limites da política chinesa, ou seja, o livro precisava (assim como eu ao entrar no campo da Literatura e Teoria Literária) “pisar em ovos”, pois para que ele alcançasse reconhecimento e passasse pela censura, devia equilibrar os dois lados da balança.

Assim, Yu Hua desfere críticas, mais em forma de alfinetadas do que de palavras diretas, tanto ao regime comunista quanto a abertura capitalista, assumindo a verve trágica, pungente e pesaroso; ao falar do primeiro e a sátira rocambolesca em relação ao segundo, criando situações mirabolantes, engraçadas e emocionantes para os personagens do livro.

Irmãos é uma boa leitura, que devido a seu derredor, obrigou-se a assumir nuances menos dicotômicos e uma prosa menos ousada, mas que, quando analisado nas entrelinhas, revela sentidos muito interessantes sobre a história chinesa e os dramas das transformações pelas quais passou, entalhadas nas peculiaridades icônicas dos personagens de Yu Hua.