9 de outubro de 1999: o dia do já anunciado, porém não menos triste, adeus ao meu poeta preferido. Coisa estranha. Estava o número 9 mais presente na sua ímpar vida de atração por números pares do que você imaginava. Você faleceu nove meses depois do dia nove de janeiro, quando completou mais um ano de vida. “Falecer” é um termo formal demais, um termo frio demais. Permita-me a correção: você, João Cabral de Melo Neto, conforme a perspectiva rosiana, não morreu, ficou encantado, porque “as pessoas não morrem, ficam encantadas.

Talvez o termo “encantado” possa, de certa forma, ofender-te, meu amado poeta, por isso, peço licença a Guimarães para substituir essa palavra, momentaneamente, por “incomunicáveis”. Mas a verdade é que eu também não acredito que as pessoas quando deixam essa vida fiquem “incomunicáveis”. Satisfeito, agora, poeta da comunicação?

Não, o termo não é satisfatório, porque o imortal, que ocupou a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras (cadeira que tem, como patrono, Tomás Antônio Gonzaga, o poeta de Marília) comunica-se conosco por meio de sua obra. Além disso, eu o chamei de poeta, o que não o deixaria satisfeito, embora ele tivesse essa pedra-palavra no seu encalço.
João Cabral de Melo Neto nasceu no dia nove de janeiro de 1920 e faleceu no dia nove de outubro de 1999. Deixou-nos uma vasta obra poética, e fascina-me, desde sempre, pela lucidez de sua escrita, por aquilo que ele costumava chamar de “trabalho de arte”. Além da obra poética, Cabral deixou-nos contribuições grandiosas em termos de crítica literária. E é imprescindível que se destaque o fato de que a poética cabralina é coerente com as suas leituras críticas acerca da criação literária.

Em uma série de quatro artigos, sobre “A Geração de 45” (à qual, CRONOLOGICAMENTE, Cabral pertence), publicados no “Diário carioca”, em 1952, João Cabral ressalta que “não existe uma poesia, existem poesias. E o fato de um jovem poeta filiar-se a uma delas, na primeira fase de sua vida criadora, menos do que um ato de submissão de um poeta a outro poeta, é o fato de adesão de um poeta a um gênero de poesia, a uma poética, dentre todas as que ele pensou estar mais de acordo com a sua personalidade.”

O poeta da enxaqueca defendia uma poesia pura, ou seja, que deveria ser destituída do que é acidental, anedótico; em suma, Cabral opunha-se à poesia de circunstância.

É fato que a obra cabralina tem uma passagem pelo surrealismo, mas foi um como um “rito de passagem”, foi o período do Cabral provando de todos os doces para, no fim, decidir que preferia o sal. Em “Pedra do sono”, percebemos traços surrealistas na escrita de João Cabral, mas o poeta fazia questão de ressaltar que era contrário ao automatismo da escrita. A poesia de Cabral, que, segundo o próprio, visava à comunicação, dialoga com Miró, Mondrian, Valéry, Baudelaire (que, para Cabral, era o melhor poeta do mundo), Poe, dentre tantos outros.

As duas águas da escrita cabralina:

Dono de uma concisão estilística invejável, Cabral era adepto do lutar com palavras. Sua obra foi dividida, por ele mesmo, em Duas Águas, de 1956. Uma água construtiva e outra participante. Essas duas águas (vertentes) correspondem à poesia metalinguística (na qual o poeta pernambucano versa sobre a própria arte da construção arquitetônica, engenhosa, do poema) e a social (que não fala só da problemática social do homem do nordeste, mas da problemática social universal, de modo geral. As obras mais conhecidas dessa “água” são Morte e Vida Severina e O Cão sem plumas). Porém, esses limites não são tão petrificados, há poemas em que Cabral une a metalinguagem ao engajamento.

Como aponta Antonio Carlos Secchin, ao falar sobre “Rios sem discurso” e “Tecendo a Manhã”, “a construção do percurso fluvial é, também, reflexão sobre o discurso da poesia; como em Tecendo a manhã, não é preciso falar do social para que ele seja dito”.

Ainda sobre a divisão da poesia cabralina, Décio Pignatari alerta-nos sobre algo que pode acontecer se pretendermos separar, abruptamente, essas águas:

“Eu acho que é reducionista e prejudica o entendimento da obra de João Cabral. O pessoal da Academia de Letras e os acadêmicos da Universidade se contentam com esta divisão e acham que ela explica tudo. Mas não é bem assim. João Cabral sustenta uma enorme crise, um debate que nunca se resolve, entre a obra de arte em si e a obra de arte enquanto instrumento de melhoramento e aperfeiçoamento social. Ele mantém esta contradição constantemente, e isto impregna toda a obra dele. O conflito é rico e é muito mais entranhado.”

Comentários sobre algumas obras de João Cabral de Melo Neto

Pedra do Sono (1942): primeira coletânea de poemas de João Cabral de Melo Neto. Reúne poemas curtos, escritos em sua adolescência, em Pernambuco. No símbolo “pedra” temos a obsessão de ordem e a clareza que motivará toda a sua produção literária; e, em “sono”, a poesia ainda vaga que o poeta luta para transformar em palavras concretas. Neste primeiro livro, o poeta já busca um caminho poético próprio, oscilando entre a técnica imagística do surrealismo e o intelectualismo artístico de um Mallarmé ou de um Paul Valéry.

O Engenheiro (1945): Nessa coletânea, aparece o ideal de um projeto de construção geométrica dos poemas cabralinos, o que afasta o poeta do tom “vago” que habitava Pedra do Sono. Posteriormente, João Cabral se firmará como o poeta engenheiro da perfeição geométrica.

Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947): Em Psicologia da Composição temos acentuadíssimas reflexões sobre a criação poética. Fábula de Anfion é um poema narrativo onde o anti-herói procura despojar a poesia de sua afetividade. Com Antiode o poeta coloca-se contra a forma de poesia entendida tradicionalmente como profunda: o poema é construído através da objetividade da palavra escrita e não através dos “estados da alma” da tradição romântica.

O Cão sem plumas (1950): foi escrito em Barcelona e inicia um ciclo de poemas nos quais o poeta explicita sua preocupação com a realidade pernambucana: ele busca, em meio a uma atmosfera mineral, um homem vivo. A ênfase sociológica desse poema marcará igualmente as produções posteriores: O Rio e Morte e Vida Severina.

O Rio – ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1953): intensifica-se a identificação do poeta com o drama nordestino. O poema, construído na primeira pessoa, incorpora a técnica narrativa dos antigos romanceiros da tradição ibérica. A voz poética é a do rio, que narra suas experiências históricas e sociais em um tom de “prosa” bem popular. O poema é dividido em 29 segmentos, com indicação dos locais onde a ação da narrativa será desenvolvida. É o poema mais prosaico de João Cabral de Melo Neto.

Morte e vida severina – auto de Natal pernambucano: é o texto mais popular de João Cabral de Melo Neto, é um auto de Natal do folclore pernambucano e, também, da tradição ibérica. Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: “morte” e “vida”. No primeiro, temos o trajeto de Severino, personagem-protagonista, para Recife, em face da opressão econômico-social. Severino tem a força coletiva de uma personagem típica: representa o retirante nordestino. No segundo movimento, o da “vida”, o autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos autos tradicionais; ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua capacidade de resolver os problemas sociais.

João Cabral de Melo Neto: obra completa

Segue, abaixo, em uma tentativa (não muito feliz) de exercitar a prosa poética, uma listagem de TODAS as obras de João Cabral de Melo Neto. Se alguém se interessar pela obra completa do escritor pernambucano, eu indico a da Editora Nova Aguilar, que vocês só conseguem encontrar, atualmente, nos sebos. Mas vale a pena, é um trabalho muito bem feito. A organização é da Marly de Oliveira (com a supervisão do próprio João Cabral).

Na Pedra do Reino, Suassuna entregou-me a Pedra do sono. Sonhei, e encontrei Os três mal-amados, que acabaram por me confundir com O engenheiro. Não satisfeitos com minhas explicações, baseadas em Poe, sobre a Filosofia da Composição, os mal amados obrigaram-me a teorizar a Psicologia da Composição. Senti-me como O cão sem plumas. Foi aí que avistei O Rio. Então, enveredei-me por Paisagens com figuras. Cuidado! Pensei, vai que eu me encontrasse com a indesejada das gentes? Ainda tenho muito para saber sobre essa minha Morte e vida severina. É preciso cortar os excessos da poesia. Lapidá-la com Uma faca só lâmina. Essa Quaderna, não Quadrilha, me lembra Dois parlamentos. Cheguei no Serial. Parei. Agora é hora da antilição, do silêncio, da dureza, da Educação pela pedra. Mas esse meu sonho é mesmo um Museu de Tudo. Vou até aprender com A Escola das facas e rir com o Auto do frade. Perdida por esses Agrestes, nem sabia do Crime na Calle Relator. Mas que bela Sevilha andando e Andando Sevilha. Já está na hora de alguém fazer Considerações sobre o poeta dormindo. Estaria Joan Miró pintando meus sonhos? A inspiração e o trabalho de arte são temas caros à Poesia e composição. Isso não escapa à Crítica literária. Podemos fazer tratados para falarmos Da função moderna da poesia, ou podemos falar sobre Como a Europa vê a América. Não falemos sobre o Elogio de Assis Chateaubriand. Tudo bem, falemos. Deixemos ressoar A diversidade cultural no diálogo Norte-Sul. E depois…

Sobre a autora: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no Twitter como @cleoamachado