A Geração Beat trouxe a baila temas no mínimo controversos. Sua postura de não-adesão ao american way of life, aos moralismos e às convenções sociais, que vão desde carreiras até as posturas de constância monótona perante a riqueza do mundo por descobrir e o desprezo pelo materialismo; aliadas a seu modo de vida desregrado e movido a experimentações de toda a sorte, os levaram a fama e ao sucesso, bem como suas obras controversas e geradoras de discussão.

Escrever uma história sobre o submundo das drogas e a vida dos drogados não era algo que fosse passar despercebido, tanto a nível de crítica quanto de público e, convenhamos, certamente também não das autoridades e quaisquer órgãos, classes e grupos que tivessem como missão manter a estabilidade social, mesmo que para isso, liberdades, direitos e questionamentos tivessem que ser barrados e atropelados.

Partindo dessa convulsiva realidade é que podemos enveredar por Junky, livro escrito por William Burroughs, um dos mais eminentes integrantes da Geração Beat, que contou ainda com nomes como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e outros. O livro é cru e sem grandes elaborações literárias, preocupações estéticas ou reflexões profundas, mas a crueza com que a história é contada (ou relatada) se levarmos em consideração a multiplicidade de experiências pelas quais os beats passaram e o estrondo que causaram, faz com que a obra se constitua um material rico para penetrar nos meandros desse tão desconhecido, pululante e polêmico mundo.

O livro nos apresenta William Lee, o protagonista, a cargo de quem ficou a narração do livro (até certo ponto alter-ego de Burroughs). Ele relata sua infância em uma prosaica cidadezinha dos Estados Unidos, seus tempos de colégio e as escolhas universitárias e de carreira que ele tentou levar adiante. Porém, partindo dessa realidade, sem grandes atrativos, permeada de dores de cabeça, preocupações rasteiras e amarrada por convenções sociais tacanhas das mais variadas, é que o narrador vai, aos poucos, penetrando no mundo dos junkies.

Desse relato fluido e curioso, que vaga por todo o tipo de drogas, desde entorpecentes até morfina, de drogas injetáveis e Nembutal a cigarros e bebidas alcoólicas, Burroughs mostra o dia-a-dia dessas pessoas, e investiga seus expedientes para manter o vício, como a estratégia de roubar bêbados dormindo ou passageiros que pegam no sono nos bancos do metrô. Além disso, Burroughs é subversivo sem perder a naturalidade, falando de sexo e drogas com a mesma espontaneidade e tom com que fala sobre política, homossexualidade, refeições ou notícias.

Baseando-se em suas próprias experiências rodando pelos caminhos e becos dos Estados Unidos em meio ao tenso clima de caça às bruxas em que os junkies viviam, ameaçando a ordem pública e o “bem-estar social”, Burroughs consegue construir um relato que mergulha fundo no submundo das drogas, dos marginais perseguidos pela polícia e condenados pelo Estado, cuja escolha de embrenharem-se nos atoleiros dessa realidade underground assume as vestes de contravenção, estilo de vida, fatalidade, opção própria, refúgio escapista etc.

Certamente dizer que Burroughs foi neutro ao escrever esse livro é incorrer em um erro, já que a neutralidade é um mito, entretanto, Junky é uma obra que procura manter-se o máximo possível sobre a corda bamba, pendendo (influência do gosto pelo proibido típico dos beats) por uma simpatia e compreensão dos habitantes desse mundo tão próximo e ao mesmo tempo tão marginal.

Os junkies, sejam os de morfina, de álcool, de drogas, de maconha ou quaisquer outros, são tirados do senso comum, que os taxa de simples vítimas ou de escória que prolifera o vício e degenera a sociedade; o autor mostra como há muito mais que se esconde sob o discurso institucional ou a opinião pública, há uma sociedade com próprias “leis” e regras, com um modo de vida distinto, com personagens diversos que são ao mesmo tempo vítimas e algozes, culpados e inocentes, incompreendidos e condenados.

Como Allen Grinsberg aponta no prefácio, falar sobre drogas e todos os elementos subversivos e polêmicos que ao redor dela orbitam não era nada fácil ou seguro na década de 60, como, aliás, não o é hoje em dia. Burroughs contornou esses obstáculos com a tônica paradoxal de equilíbrio caótico dos beatniks.