Imagem 1.1.: Virgílio lendo a Eneida para Augusto, Otávio e Lívia. Animadvertir as expressões faciais das personagens nesta e noutras: é provável que Virgílio esteja lendo o Livro VI (comprovado nuns), famoso por sua descida ao inferno. Jean-Baptist Wicar (1762-1834).

Publius Vergilius Maro, poeta máximo da Roma antiga, que consolidou o latim assim como Camões o português e Dante o italiano (duaspétalas do mesmo pedúnculo), finava há 2030 anos atrás, com pouco mais de cinquenta anos, deixando para a posteridade uma influência literária que nunca mais será superada ou sequer igualada. Assim como Firdusi ou Vyasa mostraram-se canônicos para o Oriente, Virgílio foi o poeta máximo do Ocidente, equiparando-se apenas a Homero e superando o mesmo no domínio linguístico (David S. Wiesen, Virgil Minucius Felix and The Bible). Desde o século inicial do Império Romano até Goethe, todo estudo de literatura latina na Europa iniciava-se com a primeira Bucólica, e Ernst Robert Curtius em Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter, diz que “não haverá exagero em dizer que falta a quem quer que desconheça esse poema [as Bucólicas] uma das chaves da tradiçãoliterária europeia”.

Publius Vergilius Maro, as armas e os barões assinalados, quella fonte che spandi di parlar sì largo fiume, iniciou sua carreira literária com as Bucólicas (ou Éclogas), um conjunto de dez poemas de influência ímpar que gerou no autor o epíteto de profeta, de mágico. Seu campo pastoril e seus pastores poetas, atuados por Teócrito e seus Idílios, influenciaram, por conseguinte, não apenas a literatura, mas também a história e a teologia. Indo do visionário ao idealizado, do romântico ao musical, Virgílio edificava um afã que seria lembrado no final das didáticas Geórgicas e no começo da épica Eneida, que ministraria à Dante o bello stilo che m’ha fatto onore, impingindo-o poeta justo no tempo vero, como o clamava T.S. Eliot, urdindo-o o pai do Ocidente, segundo Thomas Haecker.

A singela resenha dos poemas será feita gazeando-se uma aura cronológica, pois que esta gera debates infindáveis e que não impenderiam numa resenha e talvez nem numa centúria das mesmas. Este aspecto será abscôndito em relação ao caráter simétrico indicado por Paul Maury que pode gerar uma análise menos digladiante e mais “interessante”, na medida em que opera com o místico número 666. Como edições das Bucólicas, temos uma recente feita pela Editora Ateliê, de extrema elegância e mui bom conteúdo: a tradução, hermética e erudita, correta e monumental, é de Manuel Odorico Mendes, um dos mais augustos e régios tradutores que o Brasil já teve; ostenta também um grande número de comentários realizado pelo Grupo de Trabalho Odorico Mendes, sediado no Instituto de Estudos de Linguagens da Unicamp, dando ao interlocutor a garantia de um bom conteúdo e de uma boa abordagem. Aquém desta, existe também outra edição, antíqua e apenas encontrada em sebos, da Editora da Universidade de Brasília em trabalho conjunto com a Editora Melhoramentos, datada de 1982, com tradução em versos de quatorze sílabas por Péricles Eugênio da Silva Ramos além de uma introdução de Nogueira Coutinho e interessantes ilustrações de Marcelo Lima. É aconselhável que se tenha as duas edições afim de se obter um entendimento uno de uma obra de tão suma importância.

Imagem 1.2: Virgilio lendo a Eneida para Augusto e Otávia. Angélica Kauffman (1471-1807).

Entrementes, o estudo de Paul Maury, Le secret de Virgile e l’architecture des Bucoliques, dificilmente será aproveitado por um leitor conterrâneo. Para tal obstáculo, existe uma edição portuguesa denominada “Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio”, escrita por João Mendes e publicada pela editora Almedina Brasil com primeira edição datada de 1997. Ironicamente, a edição não é encontrada facilmente em sebos tampouco lojas brasileiras, mas a mesma escalpela o estudo de Paul Maury de forma fidedigna, e em lojas especializadas em produtos importados a mesma poderá ser docilmente encontrada.

A primeira bucólica, correspondente à nona, conta-nos do diálogo estabelecido entre os pastores Títiro e Melibeu acerca da perda e manutenção de terras ganhas. Títiro, com traços autobiográficos de Virgílio, é um escravo recém-liberto que conseguiu conservar seus campos graças a Otávio, ao passo que Melibeu perdeu os dele para veteranos de César contemplados pelos Triúnviros. Péricles conta-nos que esta écloga é considerada pessoal pela tradição. O entendimento disto está na correspondência de fatos relatados no poema com fatos ocorridos durante a vida de Virgílio, em especial o que é narrado por Títiro. Saint-Dennis, no entanto, abica que tanto Títiro quanto Melibeu representam Virgílio, com suas nuanças e caráteres físicos discrepantes (como um Títiro carunchoso). No entanto, estes aspectos pessoais da bucólica não podem ser afirmados nem comprovados, e segundo Bellesort, o que Virgílio quis fazer foi uma ação social, comovendo-se com o que acontecia na Gália Cisalpina. É desta bucólica donde, a partir do primeiro hemistíquio do verso 27, se retirou o lema da Inconfidência Mineira: “Liberta quae serás tamen”, comprovando a influência história do grande poeta romano.

A segunda bucólica, correspondente à oitava, relata o amor não recíproco do pastor Córidon por seu belo e jovem servo Aléxis. Nos textos bucólicos virgilianos, as relações homossexuais entre pastores são usuais, e ao passo que se canta o amor por personagens femininas, personagens masculinas enfiam-se e evolam-se com a mesma leveza. Atiladamente, as personagens masculinas costumam aparecer com mais frequência que as femininas, e mergulhar no amor de Córidon que se aprofunda na noite é encontrar os primeiros indícios de amor platônico que só seria melhor explicitado na décima bucólica. Acredita-se que Aléxis seja na verdade um servo que fora dado a Virgílio por Pólio, e o amor de Córidon é o mesmo amor que Virgílio sentira por seu servo. Referências incomprováveis, todo o clima romântico tecido pela hábil poesia virgiliana é desfeita com versos paralelos aos teócritos: “Inuenies alium, si te hic fastidit Alexim”, mergulhando o poema numa noite mais profunda do que aparenta: ilação ao final da primeira.

A terceira bucólica, correspondente à sétima, tem como alcantil o canto amebeu, ao contrário de seu introito, considerado falto pela maioria dos comentaristas. Aqui começamos de forma paralela ao IV Idílio de Teócrito, onde Battos (aqui Menalcas) pergunta a Córidon (aqui Dametas) de quem são seus rebanhos; obtendo como responda “são de Égon (preserva-se o nome)”. Segue-se a esta cena uma troca de achincalhes, onde um tenta mostrar-se superior ao outro; ulteriormente temos, já, o uso do canto amebeu, uma espécie de “justa poética”: o primeiro poeta expõe um tema e o segundo deve, com o mesmo número de versos que o primeiro, ater-se ao assunto e versá-lo de modo análogo ou contrário. Versos mais belos de todo o livro estão contidos neste canto amebeu, fazendo com que Bellesort afirme que há dois milênios vemos Galatéia jogar a maçã, exibir-se e esconder-se.

Imagem 1.3: Virgílio lendo o Livro VI da Eneida para Augusto. Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780 – 1867).

A quarta bucólica, correspondente à sexta, é considerada o ponto alto de todo o livro, dando a Virgílio o epíteto de profeta. Lactâncio, Santo Agostinho e o imperador Constantino diziam que Virgílio, neste texto, previu a vinda de Cristo à Terra. Hoje em dia tal teoria é desacreditada, mas não se pode dizer que foram infundadas. Virgílio canta da vinda de um garoto ao mundo que traria consigo a Idade do Ouro, findando a Idade do Ferro e por conseguinte trazendo paz e calmaria. As interpretações acerca de quem é esse garoto caem no contexto cronológico da obra, mas Saint-Denis diz que o garoto poderia ser qualquer um, pois, segundo ele, a Idade do Ouro faria com que os deuses e os heróis se aproximassem da humanidade, criando-se assim tempos brandos e benignos. Em suma, tudo que se pode afirmar desta enigmática bucólica está no distanciamento do plano pastoril da obra, alcançando um universalismo nítido que só é equiparável com a sexta bucólica.

A quinta bucólica, correspondente à décima, sendo ela representativa da ressurreição. Mopso, com 24 versos, discorre sobre a morte de Dáfnis, um pastor poeta que aparecerá na sétima bucólica e que será (e foi) citado em outras. Menalcas, com outros 24 versos, discorre acerca da apoteose de Dáfnis. Não temos aqui uma batalha entre dois poetas procurando a sobrepujança em relação a seu combatente, mas sim a união de duas frautas em prol de outrem que se demonstrou, em vida, um exímio poeta. O tom de certa forma carinhoso com que os poetas referem-se a Dáfnis será claramente aprofundado e confortado na oitava bucólica. Existe aqui também uma alusão metafórica à morte prematura de César, alapardada habilmente pelo tom pastoril da poesia virgiliana. Oras, diz Péricles, se Virgílio realmente quis criar uma ponte textual para com César, ele não quis fazê-lo de forma explícita, e em alguns aspectos é perfeitamente plausível e aceitável que a vida de Dáfnis difira da de César.

A sexta bucólica, correspondente à quarta em seu universalismo, mostra o primeiro suspiro de Virgílio para com a poesia épica, como se o poeta sovrano estivesse preparando e auto profetizando o poderoso épico que criaria não muito tempo depois (e que condenaria às chamas em seu leito de morte). Mnasilo e Crômis (pouco tempo depois mais Egle, a mais formosa das Náiades) amarram Sileno, uma divindade de grande sabedoria que frequentemente se inebriava, e que, segundo Perret, representa a poesia bucólica no que a mesma tem de sobrenatural. O escopo dos “raptores” é fazer com que Sileno cante, que Sileno toque sua frauta (coisa corriqueira aos humanos); e Sileno, sem muito bufar, canta a criação do mundo em sua primeira estrofe, passando depois para uma narrativa de feitos e feitios mitológicos: a paixão de Pasífae por um touro, a suplantação de Hipómenes para com Atalanta, as lágrimas das Helíades… Todo esse enciclopedismo magistralmente recriado com um tom bucólico é finalizado numa troca de referenciais, indo de Febo cantor, passando aos loureiros, Sileno, os vales e os astros; e porque não imaginar o leitor, distante do cosmos, das estrelas virgilianas, espalitando o canto de Sileno sempre e sempre perene? O universalismo desta bucólica, pode-se dizer, abarba o leitor de forma manifesta, como se o leitor também tivesse trincafiado Sileno e estivesse a auscultar seu canto melífluo…

Imagem 1.4.: Virgílio lendo o Livro VI da Eneida para Augusto e Otávia. Jean-Joseph Taillason (1745 – 1809).

A sétima bucólica, correspondente à terceira em seu aspecto musical, historia o combate ocorrido entre Córidon e Tírsis, assistido por Melibeu que escarafuncha uma ovelha desgarrada e por Dáfnis a convidar Melibeu a escutar o combate amebeu, não se preocupando com a ovelha que voltaria quando a necessidade fizesse lei. O canto amebeu desta écloga, diferente do canto da terceira, tem origens não explicitadas, mas a principal diferença entre estes dois cantos está em seu final: na terceira, nenhum dos dois poetas fora conclamado vencedor; nesta, no entanto, temos que Córidon vence Tírsis, segundo julgo de Dáfnis: a razão, tênue, consiste no fato de Tírsis concentrar seu rude canto em si mesmo, num egocentrismo protraível do canto de Córidon, que além de ser mais leve, é capaz de admiração e espontaneidade, aproximando-se mais da frauta bucólica.

A oitava bucólica, correspondente à segunda em seu aspecto amoroso, é considerada a bucólica mais musical de toda a coleção. Tal apanágio deve-se à presença de um refrão bem como de jogos aliterativos presentes e marcantes, sobrepujando-se em relação aos outros textos. Dedicada a Pólio, a oitava écloga relata os cantos de Dâmon e Alfesibeu, ambos com conotações amorosas, com a diferença de Dâmon cantar seu amor a uma mulher que não o quer ou o rejeita, terminando numa alusão ao suicídio; o canto de Alfesibeu, em contrapartida, fala de um ritual mágico para trazer Dáfnis da cidade, e em razão desta écloga Virgílio ganhou o epíteto de mágico no medievo. O canto de ambos os pastores constitui-se de modo análogo, dissimilando-se no final, pois, segundo Perret, o canto de Dâmon terminou de forma maligna enquanto o de Alfesibeu terminou de forma benigna, visto que Dáfnis retorna citadino.

A nona bucólica, correspondente à primeira em seu aspecto territorial, tem como chave a ordem cronológica de composição: novamente canta-se a expropriação terrena. Dura aqui uma conversa entre Lícidas e Méris, onde aquele exalta os versos de Méris, que os recita e complementa (existe, no entanto, uma discrepância interpretativa em se identificar os versos como realmente sendo de Méris, devido ao verso 55: “Sed tamen ista satis referet tibi saepe Menalcas”). Para alguns comentadores, a personagem de Lícidas é a mais forte de todo o livro por sua espontaneidade bem como humildade, além de seu respeito à pastores mais velhos. Esta bucólica, intrinsecamente ligada à primeira, pode significar que Virgílio perdeu suas terras se este poema é ulterior ao primeiro; mas pode significar que Virgílio manteve suas terras, quando transato ao primeiro. Esta disposição cronológica, provavelmente jamais findável, torna-se possível apenas com uma luz autobiográfica considerada por seu interpretador.

Imagem 1.5.: Virgílio lendo a Eneida para Augusto e Otávia. Samuel Woodforde (1763 – 1817).

A décima bucólica, correspondente à quinta, donde diz da morte, é a última, a derradeira. Para J. M. Mackail, esta bucólica é a mais formosa e virgiliana de todas, fazendo de Virgílio o legítimo criador do romantismo europeu medieval e moderno. Não há do que se duvidar de tal afirmação, no passo que o caráter romântico aqui é férreo e opulento, tendo vida fora do canto simétrico da oitava bucólica ou da conformidade final da segunda. O amor de Galo, o grande dos poetas elegíacos romanos segundo Ovídio (mas nada de Galo nos resta hoje), por Citéris, uma mulher que o havia deixado nas bordas do Reno para fugir com um oficial do exército de Agripa. O final da bucólica é o pôr-do-sol, o crepúsculo, que lançou seu lusco-fusco também na primeira bucólica, avocando a mesma estrela que Sileno apontaria no horizonte em seu canto universal, matutando o céu que faria descer a mais alta progênie da profética quarta…

O fim derradeiro do pasto bucólico seria novamente revivido com esmero pelas Geórgicas, mas quem não dirá que esta terra tão fecunda de poesia não seria a mesma que serviu de lastro para um potente Eneias fundar a poderosa Roma numa jornada épica que não serviria apenas de cânone para uma das maiores civilizações do ocidente, mas também como o berço de um poeta que emprestou a seu tempo o que pouquíssimos poetas conseguintes emprestaram, patíbulos, nos seus: Virgílio, 2030 anos depois, e quantos outros além, lídimo padre do Ocidente!

Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em Goiânia City, este fidalgo cavaleiro M**** possui como objetivo a proteção do mundo das letras e sua consequente elevação, mesmo que para isto tenha que lutar contra moinhos de vento críticos que rodopiam alegres e sempre cíclicos. Pode ser encontrado no blog “Bar do Seu Oblívio”.