É interessante notar como o romance policial (o romance detetivesco, de mistério ou de investigação) tem sido responsável pela criação de uma galeria de personagens antológicos. O mais conhecido deles é certamente Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle. Mas podemos colocar nesse rol também Hercule Poirot, o afetado investigador criado por Agatha Christie (dessa autora, aliás, talvez pudéssemos incluir Miss Marple, a simpática velhinha que resolve intrincados crimes) e também o investigador Jules Maigret, criado por Georges Simenon. Quem sabe as próprias premissas ou a estrutura dos romances policiais acolha bem a exploração mais aprofundada de um dos eixos centrais da história: o personagem que investiga os crimes ou mistérios, permitindo que eles ganhem feições mais bem delineadas, personalidades mais bem esculpidas e um conjunto de cacoetes, trejeitos e costumes essenciais para o desenvolvimento de sua persona.

Essa, creio eu, é uma boa forma de encaminharmos uma discussão sobre o personagem criado por Raymond Chandler, o canastrão, sarcástico e verbalmente afiado investigador Philip Marlowe. Assim como os personagens acima citados, Marlowe aparece em diversos livros, o que criou as condições para que Chandler trabalhasse e retrabalhasse aspectos, características e detalhes que compõem o personagem, dando-lhe uma presença bastante densa e marcante nas histórias. Quando Marlowe entra em cena, o leitor já fica esperando que ele faça alguma coisa típica dele, algum ato que carregue a marca idiossincrática de sua individualidade longamente gestada.

O romance O longo adeus, de 1953, traz um Philip Marlowe já amadurecido enquanto personagem. Tendo aparecido em cinco outros romances, Marlowe já teve suas feições esculpidas e seu espírito talhado por Chandler, o que torna a sua aventura mais uma oportunidade de vê-lo em ação e descobrir que novos problemas ele terá que enfrentar nesse livro, dado que ele já possui um passado.

A ação inicial decorre em torno do pedido de Terry Lennox, um sujeito perturbado, a Marlowe: ele precisa que o investigador o ajude a deixar os Estados Unidos em direção a Tihuana, pois ele pode estar encrencado uma vez que sua mulher foi encontrada morta. Marlowe sonda-o para averiguar se não é ele o assassino, e, ao concluir que não, põe-se a ajudá-lo na retirada.

A descoberta do corpo da mulher de Lennox coloca as autoridades em polvorosa, tentando rastrear o suspeito nº. 1, o marido, o que os leva a Marlowe, o qual, se descobre, ajudou o suspeito a evadir-se do país. Marlowe é preso por precaução durante algum tempo, mas, diante da insuficiência de provas (e do suicídio de Lennox em Tihuana), ele é liberado, passando, aí sim, a empenhar-se na investigação daquilo que “não cheira bem” nessa história.

O conflito que desencadeia a trama em O longo adeus (e que estrutura a própria história) é esse. Marlowe põe-se em busca das peças que faltam nesse quebra-cabeça para conseguir formar uma imagem mais abrangente e que dê conta de explicar as circunstâncias em que se deu a morte da esposa de Lennox, quem foi o culpado (partindo da premissa de que Terry não o fez), que outras pessoas estariam envolvidas e de que forma os acontecimentos se passaram.

Uma vez assentada essa estrutura inicial, Chandler procede em criar as circunstâncias que não só vão delineando o problema central rumo à sua resolução, mas também que dão chance de Marlowe ser Marlowe. Cada novo personagem que é introduzido trava contato com o investigador por meio de um diálogo cheio de entrelinhas e armadilhas, nos quais Marlowe demonstra uma desenvoltura e uma perspicácia especiais: ele parece perceber as intenções mais profundas e recônditas, as armações mais maquiavélicas e os embustes mais bem arquitetados por seus interlocutores. E, percebendo-os, rechaça-os todos com extrema secura (apontando diretamente os reais motivos por detrás de cada insinuação, olhar e entonação) e com uma admirável habilidade de irritar aquele com quem conversa. Não sendo muito dado a rodeios, Marlowe torna qualquer conversa banal numa disputa de bravatas e acusações muito divertida, quase duelos verbais ocorrendo constantemente à beira das vias de fato.

Ao contrário de Sherlock Holmes, que disseca cenas do crimes em busca de pistas e indícios quaisquer, Marlowe investiga pessoas. É a partir das conversas que mantém com os diversos personagens ao longo do livro que ele vai juntando as pontas soltas e construindo a moldura do crime. Um grande empresário que não quer chamar atenção midiática sobre si e sua família, um escritor bêbado, uma femme fatale, um mordomo chantagista, um médico suspeito, enfim, todo um conjunto de sujeitos vai aparecendo e conversando, mais ou menos amigavelmente, com Marlowe e dando-lhe, direta ou indiretamente, as informações de que ele precisa par conseguir resolver o crime em questão.

O longo adeus, portanto, é um livro grandemente baseado nos diálogos. São eles que Chandler usa para talhar cada um dos personagens, muito mais do que as descrições. E sendo Marlowe um mestre da arte do diálogo, é através deles que ele vai construindo sua galeria de suspeitos e deslindando, tanto quanto o romance policial permite, as facetas humanas deles, suas razões, suas justificativas, sua moral, seus atos.

Porém, além de todas essas conversas, existe ainda uma outra: a espécie de monólogo que Marlowe trava consigo mesmo ao longo da história, já que é ele quem a narra. Ou seja, ao lado de todas as conversas que ele mantém com os suspeitos e demais personagens, temos acesso também ao pensamentos e as opiniões de Marlowe sobre esses mesmos personagens. A prosa de Chandler nos permite entrever o método investigativo de Marlowe, suas impressões, suas canastrices e seus sarcasmos interiores, o que torna o romance todo ainda mais interessante. E se ele é irônico publicamente, imagine no espaço privado de sua mente…

O clima noir do livro, as opiniões de Marlowe, o ritmo bem cadenciado da trama, os diálogos precisos e a personalidade do protagonista-narrador, todos bem combinados, contribuem para que O longo adeus seja um livro muito interessante. E certamente contribuem para que Marlowe possa estar naquela mesma galeria de personagens com cuja listagem iniciei essa resenha: ele merece seu lugar nessa distinta constelação.