Em algum ponto entre os séculos VIII e IX os Kazares passaram por uma grande conversão religiosa. A história aceita que esse povo túrquico que estabeleceu um dos maiores impérios da Idade Média- que englobava grande parte do que hoje é Rússia, Cazaquistão e Ucrânia- tenha se convertido ao judaísmo.

O escritor sérvio Milorad Pavič, porém, preferiu não acatar a versão oficial e escolheu caminhos mais tortuosos. Em seu Dicionário Kazar, ele não conclui a questão, mas narra um pedaço a história desse povo quase mítico- que desapareceu sem deixar vestígios- apesar de nos cazaquistaneses clamarem serem seus descendentes essa é uma afirmação tão comprovável quanto a de que os albaneses são o que restou dos antigos ilírios.

O livro inicia nos contando quem eram os kazares e sobre sua conversão. Na versão de Pavič, um governante desse povo teve um sonho e decidiu converter a si e a seu reino para uma das três grandes religiões Abraâmicas– o judaísmo, cristianismo e islamismo.

Ainda na introdução, descobrimos a suposta existência e desaparecimento de inúmeras versões  prévias do Dicionário Kazar. Tratam-se de uma série de dicionários escritos ao longo dos tempos e que tentavam elucidar a questão de qual das três religiões foi a escolhida. Dicionários que carregavam em si maldições- desde a morte de quem os lesse até espíritos vampíricos presos lá dentro.

Depois iniciam-se as sessões principais do livro. São três, cada uma composta das fontes que pesquisadores de cada uma das religiões forneceu. Começamos com o livro vermelho, contendo as fontes cristãs; ao qual se segue o livro verde, com o material dos seguidores de Maomé; por fim temos o livro amarelo, com as fontes judaicas. Ainda mais dois anexos seguem-se aos três livros principais.

Como o livro está organizado de maneira semelhante a um dicionário ou uma enciclopédia, não existe um enredo bem definido. Cada verbete explica uma parte da história, sendo que alguns verbetes existem em todas as fontes, tendo informações diferentes- e que podem tanto se complementar quanto se contradizer- em cada um dos livros. Mas contos medievais sobre demônios e vampiros, histórias sobre fantasmas e relatos de acadêmicos modernos acabam por se misturar, formando uma história extremamente colorida e complexa.

Falando em complexidade, ela ainda aumenta: o livro foi publicado em duas versões, uma masculina e uma feminina. São praticamente idênticas, exceto por partes de um parágrafo. Essa pequena passagem, no entanto, é crucial, e dependendo da versão lida (eu li as duas) chega-se a um entendimento totalmente diverso.

Dicionári Kazar é um livro bastante interessante e original. Ao mesmo tempo em que discorre sobre a história, sobre a memória e sobre sonhos, é um tratado sobre o quão complicada as regiões dos Bálcãs e dos Cárpatos sempre foram- uma infinidade de povos, com uma quantidade ainda maior de línguas, religiões e aspirações, todos chamando um espaço relativamente pequeno de lar.

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