Estórias abensonhadas: um livro abençoado, de um escritor agraciado pelo dom da palavra.  É neste livro que está catalogado, escondido, bem lá no cantinho, “O Cego Estrelinho”. Coisa pra gente curiosa ver. Coisa pra gente inteligente apreciar, com o auxílio da mão de Mia Couto, escritor moçambicano. Mão que, a exemplo da “mão de Gigito”, instrumento que “conduziu o desvistado por tempos e idades”, conduz o leitor por veredas percorridas pela escrita.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o conto “O Cego Estrelinho” constitui-se na narração da vida de um cego que, por meio dos relatos do seu guia, Gigito, tomava conhecimento de um mundo bem diferente daquele em que vivia. Ao invés de relatar os horrores da guerra, Gigito falava sobre o mundo que existiria se não houvesse guerras.

Mas, para lembrar-nos de que elas existem, Mia Couto tira de Estrelinho o guia, e, dos leitores, os “olhos”. Gigito vai para a guerra. É quando sua irmã, Infelizmina, assume o posto de guia, e, diferente do que o irmão fazia, relata, ao cego, o mundo de forma “nua e crua”.

No conto “O cego Estrelinho”, de Mia Couto, é possível destacar a presença de dois tipos de visão: a visão “realista” e o olhar “visionário”. A primeira se caracteriza por ser aquela na qual se tem um relato da realidade tal qual ela é; e o olhar visionário constitui-se como uma representação de um ideal de realidade que é pautado pela transcendência.

A visão realista em “O cego Estrelinho” pode ser representada pela personagem Infelizmina: “E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade”.

A visão de Infelizmina era desprovida de fantasia, de sonhos. Nos dizeres de Alberto Caeiro – um dos heterônimos de Fernando Pessoa- “Creio no mundo como um malmequer, porque o vejo.”

Diferentemente de Infelizmina, o Cego Estrelinho tinha um olhar visionário acerca do mundo. Ele não enxergava com os olhos físicos, pois era desprovido do sentido da visão, contudo, enxergava com o coração, com a imaginação – assim como o seu primeiro guia, Gigito – como se pode observar em: “até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da casa. Então, iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários firmamentos”.

A relação entre a visão realista e o olhar visionário em “O Cego Estrelinho” aponta para a necessidade de buscarmos um equilíbrio entre essas instâncias. Quando  a verdade não nos alimenta, deixa-nos famintos, precisamos beber da fonte da fantasia.

Assim, o mundo que Gigito apresenta ao Estrelinho é um mundo inventado, tecido a partir do uso da mentira, como se pode observar em: “a mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira”. Ao ler esse trecho, muitos leitores podem fazer um julgamento pejorativo da atitude de Gigito de descrever o mundo para o cego se utilizando da mentira. Todavia, o guia “via para não crer”. Ele via as minas de guerra, a pobreza, para não ver, para inventar um outro mundo.

O estatuto da verdade e o estatuto da fantasia, nesse conto, constituem-se na medida em que a presença de um não anula a do outro, pois a fantasia não anula a verdade, fazendo com que prevaleça a mentira; ela nos ajuda a refletir sobre a realidade, a verdade.

Ao mostrar um mundo que não existe, a fantasia faz uma crítica ao mundo real, deixando evidente o que ele não é, porque para que se tenha uma antitese, no caso, o mundo imaginário, é necessário que exista  uma tese, um mundo real, isto é, um referencial de mundo. E, em “O Cego Estrelinho”, a tese é a de que, na realidade, predominam, no mundo: a pobreza, a guerra e a morte.

Ao partir do pressuposto de que a fantasia se apropria do Simulacro, em “O cego Estrelinho” pode-se dizer que ela subverte a realidade, apresentando uma interferência nesse referencial, e expondo um modelo ideal de mundo.

Nesta perspectiva, encaixa-se, no conto, a  visão poética. Essa visão se presentifica através do uso de elementos do poético, tais como: metáforas, sinestesias, neologismos, paradoxos, entre outros recursos tão bem explorados nas prosas poéticas de Mia Couto.

A partir do título do conto, somos apresentados à linguagem da fantasia, pois ele, “O cego Estrelinho”, além de ser um neologismo, é uma antítese e uma metáfora. Antítese porque a palavra “cego” nos faz pressupor a existência de uma escuridão, e o vocábulo “estrela” – palavra da qual se origina o termo “Estrelinho” – nos remete a um conjunto de imagens que nos dá a idéia de iluminação. Em uma leitura mais atenta, podemos ver (com o perdão do trocadilho) no belo título deste conto, um paradoxo.

Já a metáfora pode ser evidenciada pelo fato de que o cego, que geralmente é quem necessita de um guia, acaba sendo o guia, “a estrela guia”.

A personagem Gigito Efraim é uma mediadora da visão poética no conto. Gigito tinha o sentimento poético. Seu nome, Gigito, é proveniente de “dígito”, que, por sua vez, significa dedo. Era através dos dedos que Gigito mostrava o mundo imaginário ao cego, como se pode observar em: “o condutor falava pela ponta dos dedos”, passagem em que Mia Couto explora a sinestesia, o predomínio dos sentidos.

O sobrenome de Gigito, Efraim, nos remete a uma intertextualidade bíblica, pois Efraim foi o nome que José, filho de Jacó, deu ao seu segundo filho, e, de acordo a história narrada no livro de Gênesis, ele deu esse nome ao seu filho por que : “Deus me fez crescer na terra da minha aflição” (Gênesis, 41:52).

Essa citação nos leva a inferir sobre o papel de Gigito em ” O Cego Estrelinho”, pois, sendo Estrelinho um cego, ele possui uma vida errante, e, nesse contexto, Gigito Efraim,  ao apresentar-lhe um mundo fantástico, faz com que cresça dentro dele um sentimento poético, em meio a sua aflição de não possuir a visão física.

É quando, amparados por Estrelinho, podemos perceber a perpetuação da visão poética, pois Gigito ensina-lhe a ver o mundo de forma diferenciada, e este, por sua vez, ensina a Infelizmina a enxergar o mundo com os olhos do coração. Ora, nós, leitores que acompanhamos a trajetória de um certo principezinho, aprendemos que  “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”

Assim, no final do conto, a personagem Infelizmina – irmã de Gigito, que assumiu o posto de guia do cego Estrelinho desde que ele foi para a guerra – passa por uma grande transformação. Ela, que era realista, tinha uma visão “nua e crua” da realidade, é apresentada (e se apresenta) ao amor, ao mesmo tempo em que, junto de Estrelinho, toma conhecimento da sexualidade.

A partir do momento em que Estrelinho começou a descrever o mundo para Infelizmina, “indo além dos vários firmamentos”, da mesma forma que Gigito o descreveu para ele, era como se o prefixo latino “IN” fosse retirado do seu nome.

Ela foi impactada pela visão poética. Visão essa que tem um poder transformador. Ironicamente, Estrelinho, que era um cego, acabou se tornando um guia para fazer a felicidade da Infeliz.

No final do conto, com a frase “Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho”, o autor deixa margem para que o próprio leitor imagine e dê continuidade a nova vida da Infelizmina, ou melhor, Felizmina.

Sobre o autor: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no twitter como @cleoamachado