Até o dia 24, teremos uma “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, e cada conversa abordará dois contos por vez. Confira os posts anteriores:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

Granta: Antes da queda e O que você está fazendo aqui

Granta: Tólia e Apneia

Granta: Valdir Peres, Juanito e Poloskei e O jantar

Granta: Noites de alface e Mãe

 

TEMPORADA

Emilio Fraia

Emilio Fraia é editor de literatura da editora Cosac Naify. Publicou no Brasil autores como Enrique Vila-Matas, Antonio Tabucchi, Macedonio Fernández e William Kennedy. Nasceu em São Paulo em 1982. Como jornalista, foi repórter das revistas piauí e Trip. Escreveu, em parceria com Vanessa Barbara, o romance O verão do Chibo (Alfaguara, 2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e atualmente termina a graphic novel Campo em branco (Comapanhia das Letras) com o ilustrador DW Ribatski.

Anica: Gostei muito do conto, o Fraia conseguiu chamar minha atenção logo de cara – gostei quando logo no segundo parágrafo o narrador diz “Se estiver aí, vamos saber logo.”. Pronto, ganha pela curiosidade. Ainda mais quando o empregado falar que o corpo estaria boiando se estivesse na piscina. O curioso é como Fraia quebra a expectativa do leitor sem que isso seja uma decepção. Você começa uma história com dois homens procurando por um desembargador, falando de “corpo boiando” e pensa que tem em mãos uma história policial, e não um conto sobre o peso das pequenas decisões das nossas vidas.

Quando ele parte para a história da raposa eu inicialmente fiquei com um baita ponto de interrogação na testa, até retornei ao ponto da conversa com o desembargador sobre o porco, e a conexão entre uma história e outra que encontrei foi que tanto ele quanto o desembargador no presente, e ele e o garoto ruivo no passado, eram pessoas solitárias se aproximando aos poucos. Mais do que isso, a questão das escolhas, como já comentei. Tem uma frase ali que gostei muito: “Quando leio sobre gente que já morreu, penso: então é assim que alguém vai escrever sobre mim um dia? Como um fato explicando o outro, as motivações? Como se alguém pudesse saber de alguma coisa.”

E você, o que achou dessa mudança do presente para o passado, essas duas histórias em uma só?

Liv: Eu achei um pouco confusa, mas lá no final fez todo o sentido. É igual aquela sensação que a gente tem ao final de um bom livro de suspense, sabe? Tipo “aaah, então era por isso? Que história engenhosa!”. Eu também gostei do conto pelos mesmos motivos que você citou. Ele já começa de uma forma interessante, por que me situou dentro da história, apresentando o ambiente e os personagens. Gostei particularmente das descrições feitas pelo Fraia e você?

Ler “Temporada” foi como um quebra-cabeças, comecei com umas peças mais fáceis, no quarto parágrafo apareceu um corpo boiando e depois foram as passagens de tempo que avançaram e retrocederam sem perder o ritmo da história, quando terminei de ler a primeira vez, corri para o início e li tudo mais uma vez.

Acho que a sua interrogação sobre a raposa foi por causa do ritmo da escrita dele, esse conto não é para ser lido uma única vez. Concordo muito com o que você falou sobre a questão das escolhas e do sentimento de solidão. Nem sei o motivo, mas quando li alguns trechos (falando sobre solidão) me lembrei de A Insustentável Leveza do Ser, mesmo sendo histórias bem diferentes

Anica: Também gostei das descrições. Aquele primeiro parágrafo, por exemplo, é muito rico. Ele consegue nos transportar para o hotel (ironicamente fora de temporada) com poucas linhas de descrição. Aliás, depois que reli o conto chamou minha atenção que entre os objetos abandonados tinha uma rede de tênis, além daquele arrastar de perna “do joelho ruim”. Parece meio que ir preparando sutilmente para o que vem depois (ou, no caso, “antes”).

Por falar em sutileza, gosto do senso de humor do Fraia, especialmente no caso do desembargador. Frases como “os dias passam, e o desembargador não vai embora” dizem muito para quem já teve uma visita em casa que não se tocava da hora de ir.

Discordo um pouco do que você diz sobre não ser um conto para ser lido de uma vez só. O Fraia marca bem o tempo com as divisões de capítulos. Repare que temos o ponto inicial em 1, aí o tempo avançado que o desembargador passou no lugar no 2 e no 3 vemos o passado. A questão é que eu esperava uma relação mais óbvia entre a história do porco e a história da raposa (sim, no melhor estilo leitora preguiçosa) e demorei um pouco para perceber que Fraia não entregaria o jogo fácil assim (mas foi uma surpresa positiva, é claro).

Liv: Mas aí é que está. Por causa das passagens bem construídas entre passado e futuro, dá pra descobrir uma coisa diferente a cada leitura. Eu fiquei pensando sobre o que estaria relacionado entre as histórias do porco e da raposa, por isso falei no meu comentário anterior sobre as peças de quebra-cabeça. Já li três vezes e eu também sou como você, gosto de relações mais óbvias. Porém o Fraia subiu o patamar do conto dele em não entregar o jogo. Me ganhou pela curiosidade desde a primeira linha até a última. Ponto pra ele.

Anica: Eu não disse que gosto de relações mais óbvias, mas que esperava por elas. Até por ser surpreendida quanto a isso que gostei ainda mais do conto, que lógico, tem suas outras qualidades além dessa.

Liv: Tá, entendi. Do que mais você gostou no conto?

Anica: Acho que principalmente do desembargador, hahaha. simpatizei com ele.

Liv: Eu gostei da mulher dele, principalmente da descrição “Era franzina, de aspecto nervoso. Considerou-a horrível, não por ser exatamente feia, era feia também, mas porque lhe pareceu agitada, com opiniões sobre as coisas.” Juro que conheço uma pessoa com as mesmas características. Caí na gargalhada na mesma hora.

Anica: Sim, disso que falo sobre o humor sutil do autor. No final das contas eu acabei gostando bastante de “Temporada”. Veio cheio de surpresas e pediu um pouco mais de atenção, mas é o tipo de leitura que vale a pena. E aí, qual sua opinião final sobre o conto?

Liv: “Temporada” é um conto que eu particularmente gostei, divertiu e prendeu a minha atenção desde o início. O propósito da Granta em divulgar novos talentos literários é muito bacana, provavelmente eu ia demorar um pouco para “encontrar” o Fraia, mas fiquei bem satisfeita com o conto e recomendo para quem quiser ler. A partir de agora, vou ficar mais atenta e procurar outros livros já lançados por ele.

F PARA WELLES

Antônio Xerxenesky

Ficcionista nascido em 1984, em Porto Alegre, Antônio Xerxenesky formou-se em letras e é mestre em literatura comparada pela UFRGS. Colabora com resenhas e críticas para diversos jornais e revistas e foi um dos fundadores da Não Editora, em 2007, por onde lançou seu primeiro romance, Areia nos dentes, em 2008. Seu livro mais recente é a coletânea de contos A página assombrada por fantasmas, editado pela Rocco em 2011. O conto faz parte de seu novo romanceF para Welles.

Tuca: Há muito tempo (quando eu sequer desconfiava de que leria tanto autor contemporâneo brasileiro e, muito menos, caras que escrevem sobre faroeste com zumbis), eu vi uma quadrinista tuitar sobre como era interessante ler os contos de um tal de Xerxenesky porque era como se ela pudesse ouvir a voz dele narrando. (Sim, Pips, minha memória para coisas inúteis parece ser infinita.) Eu, stalker que era, vi que ele respondeu que esperava que ela conseguisse imaginar outras vozes para seus contos, porque pretendia escrever sob o ponto de vista de uma mulher, um dia. Ela respondeu que, pelo jeito, suas personagens femininas teriam sempre voz de travesti.

A pergunta que não quer calar é: pra você, Ana X tem voz de traveco?

Felippe: Em primeiro, lugar: Dammit. Eu tive que reler para ficar com a mesma impressão, porque, até então, eu só achava Ana X lésbica. Depois que você levantou esse ponto imaginei Xerxenesky com uma peruca assistindo Cidadão Kane. Vou tentar apagar essa imagem da minha cabeça para continuar, ok? Voltaremos em breve…

Primeiro, gostaria de explorar o estilo de narrativa do Xerxenesky: ele gosta de inserções no meio da narrativa, não? Parênteses expositivos. Talvez esse não seja o problema de “F para Welles”; acho que o maior problema seja a prolixidade do autor. Mentira! Essa é uma qualidade imensa que poucos têm: escrever muito e sobre muitos assuntos para construir sua personagem.

Creio que esse texto, talvez, seja o mais injustiçado por trazer um apanhado mais pop/cool dentro da coletânea. Afinal, não é apenas Orson Welles que é explorado. Há todo um paralelo com os temas abordados pelo diretor em seu cinema e com a cultura pop americana oitentista. O que acha disso?

Tuca: Ok. Suscitar a imagem do Xerxenesky assistindo a Cidadão Kane de peruca: not cool. Falar em apagar a imagem da cabeça é fácil. Quero ver é conseguir.

Então, meu parágrafo inicial sobre o conto era só pra informar posteriormente (agora, para ser mais exato) que eu não achava que Ana X tinha voz de travesti. Sorry. Psicologia reversa, como costumo fazer. Reli pra ver se conseguia pegar a tua impressão, a de que ela seria lésbica, mas também não rolou. Estranho, né?

Quanto aos “parênteses expositivos”, isso é uma coisa de que gosto particularmente. Curto hiperlinks impressos (As pessoas ainda usam essa expressão? Hiperlink é tão anos 90, não é?), essa coisa meio enciclopédica e prolixa, mas compreendo perfeitamente a razão de algumas pessoas não gostarem disso. Eu mesmo não aprecio sempre: às vezes leio alguns textos que tentam imitar isso e… ficam apenas confusos – tal como os escritores de que Schoppenhauer fala mal em A arte da escrita.

Quanto a ser injustiçado: será? Ainda que a Granta tenha meio que se tornado, por um tempo, o único tema literário relevante na mídia (antes da ladeira abaixo pintada com um degradé entre o preto e o branco – você sabe muito bem do que eu tô falando), tenho levado em consideração apenas três análises: a de Felipe Charbel, para O Globo; a de Ronaldo Bressane, para a revista Select; e a de Carlos André Moreira, para o blog Mundo Livro. E, ao lê-las, percebe-se que o cara não está exatamente mal na fita. Muita gente (que não leu, que só sabia que ele estava trabalhando pro IMS, que fuçou o Twitter dele pesquisando o termo Granta, que tem preconceito com seus livros anteriores ou com gente jovem em geral, que não gosta de sotaque gaúcho etc.) chiou, mas a internet nos ensinou a lidar com isso da melhor forma.

Aliás, obrigado por ter falado do caráter lésbico (que, repito, não percebi). Tive de reler o trecho e posso afirmar que o fiz com muito gosto. Foi muito interessante revisitar o primeiro parágrafo e vê-lo com outros olhos. Para mim, ele oferecia duas leituras: uma em que a protagonista estaria fazendo uma lista de seus assassinatos anteriores (tal como na cena em anime de Kill Bill, em que sabemos mais sobre a vida de O-Ren Ishii); e, outra, em que o uso de “Havia presenciado” da segunda frase é relativizado, como em uma experiência cinematográfica (“pode parecer que estou fugindo do assunto, mas estamos falando de experiência de vida”). Eu pensei que ela apenas gostava de filmes com violência. Por isso fiquei meio surpreso com todo o lado Nikita de Ana X – apostava mais na segunda leitura.

Passo a palavra a você novamente, Pips, pra falar mais sobre essa pira pop oitentista, que não é muito a minha praia.

Felippe: Não sei se “injustiçado” é a palavra certa. Só acho que ele merecia mais destaque. Xerxenesky explora bem o lado pop, passeia pelo erudito e tem um senso de humor muito afiado (como o próprio Tarantino, que já gosta de misturar violência e comicidade). Ou seja: acho que todo aquele papo do Paulo Coelho de que os novos (e bons) escritores (assim alcunhados pela crítica) são meros jogadores de estilo que se esquecem da história é meio furado, não? Temos aqui um exemplo ótimo de entretenimento aliado a conteúdo. O cara escreve bem e sua personagem, Ana X, conseguiu me prender e me deixou ansioso pelo romance!

Eu desisti do pop oitentista, não vou mais comentar. Prefiro mil vezes nossa comparação do texto de Xerxenesky com o cinema independente dos anos de 1990.

Brincar com referências cinematográficas foi ótimo em Areia nos dentes – com a questão do faroeste de Sergio Leone – e também no conto dele “Sobrevivendo à razão“, homenagem a Hal Hartley (daí acho que também sai um pouco do humor de Xerxenesky nas letras). Mas o essencial dessa linguagem mais “cinematográfica” são os saltos no tempo, alguns pertinentes e importantes, outros que parecem apenas anedotas.

Tuca: Depois que li Veronika decide morrer, decidi que não daria mais bola para esse cara. Então a polêmica passou-me quase que despercebida. Como disse um amigo no Facebook: “Pior é ver gente (supostamente) séria defendendo essa bobagem, num espírito de populismo desvairado.”

Bah, tava esperando de você uma coisa mais musical, Pips: sou praticamente uma nulidade no tema. Não que tenha sido a coisa mais inovadora já escrita (sinceramente, toda vez que ouço coisas semelhantes eu acabo lembrando da famosa cena da quiromante no filme Antes do amanhecer: “Lembrem-se… Vocês são poeira das estrelas…”), mas eu curti demais a frase dos átomos de Ian Curtis se espalhando pelo planeta, com todo o mundo os respirando.

Li “Sobrevivendo à razão” logo depois de reler “F para Welles” – sim, ganhei outro exemplar depois do meu piripaque na FLIP. (Para os que não estavam na “casa mais vigiada de Paraty”, a informação: pouco depois de finalmente jogar minhas malas na casa alugada pelo Meia Palavra, percebi que tinha perdido um livro, o 24 letras por segundo. Acreditem, vocês não querem me ver após a perda de um livro. O resultado é meio “Leave me alone to die“.) Bonzão, né? Viu que tem uma Lúcia lá também? Imagina se ele conecta as duas histórias…

Mas, voltando à Granta: o trecho é divertido e curioso. Creio que há potencial para ser um desses livros que se compra para dar a diversos amigos, seja pelo trato interessante e ligeiramente obsessivo das referências, seja pela grande possibilidade de haver uma história que realmente atraia o leitor. Aqueles livros que se presenteia só pra poder conversar com todos a respeito, como um seriado bem realizado e divertido que se divulga aos amigos. Acho que o que estou dizendo é algo como “adoraria que houvesse um livro desse tipo por aí, com potencial de best-sellerzão mesmo, pra que todo mundo pudesse comentar com a amiga ‘Ah, você está lendo também? Tá em qual parte? OMG, eu adoro essa cena do espelho, é tão tensa! Sempre que a releio, acho que ela vai pôr tudo a perder’ e ela respondesse ‘Eu sou tão Ana X, né?’ e todo mundo soubesse que ela realmente é meio Ana X, porque todo mundo conheceria essa personagem”. Fui claro?

Sinto que escrever esse tipo de coisa é um pouco sacana. Eu gostei bastante do trecho e estou sendo sincero, mas escolher essa abordagem implica outras coisas. Como, por exemplo, colocar uma baita pressão na avaliação do produto final, o romance que está sendo produzido. Outra implicação: gifs e expressões como “best-sellerzão” não estão fazendo particularmente nenhum favor ao autor em termos “acadêmicos” e de crítica literária. Podem ser, inclusive, interpretados como um tapa de luva de pelica muito do mal disfarçado. (Talvez eu seja cínico demais e esteja apenas tentando prever todas as possíveis formas de leitura dessa conversa.)

Sei disso, mas confesso não estar lá muito interessado, no momento, em provar por A + B a relevância da escrita de Antônio Xerxenesky e em mudar a cabeça do povo. Não. Se as pessoas querem continuar utilizando os critérios anteriormente citados para avaliar a literatura do cara, pffff, problema delas. Isso não vai abalar nem um pouquinho a minha convicção de que A página assombrada por fantasmas foi uma das melhores coisas que li no ano passado (como disse em minha resenha para o livro lá n’o leitor comum, “ao lado de Cunningham, Franzen, Murakami, Carvalho, Chabon, Ishiguro e Laub”). Nem um pouquinho.

Felippe: Eu até falaria dos temas musicais, mas eu puxaria para o lado pessoal e diria: “Ei, Tony, quando você vai escrever algo no anos 2000 e fazer uma comparação entre o ritmo frenético de Rihanna e Katy Perry – a indie de academia?”. Todo esse tema (sobre o pós-rock, sobre como a MTV ditava comportamento, sobre como nasceu a cultura do videoclipe) só serviria para desviar o assunto.

Você levantou um ponto interessante no Twitter: as playlists de Murakami e Xerxenesky. Todas as referências de cultura pop usadas pelo Xerxenesky podem, sim, criar uma ponte com a literatura de Murakami e seu Kafka à beira-mar, por exemplo. Não exatamente quanto aos temas, pois os dois escrevem de modos diferentes: enquanto o primeiro usa as referências como para “ilustrar”, o segundo distorce, modifica e transforma os símbolos. Além disso, não há muita coisa no texto do Antônio que seja musical, além do que foi citado; Murakami é mais explícito quanto a isso. Fato é que em “F para Welles” a presença da playlist se dá de outra maneira: é uma playlist de vídeos, uma playlist audiovisual. Os filmes – e as interpretações destes pela protagonista – dão vontade de correr na loja mais próxima e comprar um box inteiro do Welles para rever e tentar visualizar melhor a história de Ana.

Podemos falar de F for Fake (em português, Verdades e Mentiras), aludido no título deste futuro romance de Xerxenesky. Nesse filme de 1976, Orson Welles instiga o espectador a descobrir a verdade dentro do seu documentário de ficção; sabemos que aquilo é uma obra de ficção, só não sabemos até onde o verdadeiro é mentira e a mentira é o verdadeiro. O que me leva a pensar: Até que ponto podemos acreditar na narrativa de Ana X? Ela é uma mulher mesmo e não um travesti? Como sabemos se a senhorazinha X na verdade não é um senhor X (numa possível referência ao filme Psicose)? Aliás, o que impede Xerxenesky de nos enganar falando sobre Orson Welles para camuflar o verdadeiro plot?

Posso estar indo mais longe do que devia, porém se intuito dele é enganar para depois revelar toda essa farsa de maneira grandiosa, já vale a suspeita. Afinal fui cativado e estou pronto para ler assim que sair e descobrir tudo sobre essa tal Ana X.

(Até defenderia a escrita do Xerxenesky, mas acho que você falou tudo sobre isso anteriormente.)

Tuca: [Acrescento às suas perguntas as seguintes: O trecho (o livro?) é uma carta. Para quem? Em que situação ela a escreve?]

“Aliás, o que impede Xerxenesky de nos enganar falando sobre Orson Welles para camuflar o verdadeiro plot?”

Nada, né? O difícil de falar de um trecho, e não sobre um romance completo, é que você pode estar correto. Vai que, do nada, o livro deixa de ser algo de espionagem, mulheres fatais e assassinatos e passa a ser algo exclusivamente metaficcional. Isso não é apenas uma possibilidade, mas algo provável, plausível, em se tratando de um escritor que escreveu Areia nos dentes.

O que torna meio chato o que vou dizer: eu não sei se quero isso. Acho que estou numa vibe meio Serena (Ian McEwan), meio Caixa preta (Jennifer Egan). Ainda não li essas obras – assim como não li “F para Welles” na íntegra – mas queria formar uma espécie de trilogia composta pelas três leituras. Não quero ser irredutível, mas essa é minha opinião no momento.

Sim, o nome Ana X é praticamente um convite à confusão autor-personagem. Mas o legal de ter lido recentemente Chamadas telefônicas, de Roberto Bolaño, é que isso me ajudou a entender um pouco mais esse X, que deixou de ser tão somente uma forma de fazer referência ao sobrenome do autor. Ou seja, ele ganhou alguma autonomia.

Como não sei mais o que vou falar, jogo aqui algumas notas que fiz durante a leitura:

* Curti que ela pontue ser brasileira.

* “Naquele natal ganhei muitos presentes.” Novamente o tema dos presentes dados às crianças é retomado como forma de representar mudanças político-sociais no Brasil (já havia aparecido no conto de Antonio Prata – logo o outro Antonio, veja só). É interessante pensar até que ponto o pensamento de “Como poderemos proteger nossas filhas deste mundo selvagem?” e o conservadorismo do pai o levaram a se empolgar tanto com o que ocorria naquele período da história do país.

* “[…] e não espero ser perdoada por nenhuma teoria. A culpa é completamente minha.” Ainda que ela diga isso (e tenha usado a questão parental para exemplificar o enquadramento de sua história em uma teoria psicanalítica), acabamos fazendo isso numa cena posterior. Perdoando. Daí o estilo elíptico e semi enciclopédico da enumeração de algumas das causas comuns de acidentes domésticos: ela não quer perdão mesmo, por isso mantém tudo o mais impessoal possível.

* Gostei demais que o estilo semi enciclopédico, a que me referi, lembre um pouco o jeitão de Lemony Snicket.

* Adorei o parágrafo que termina com “Ele era frágil como Ivan Ilitch.”

* Falando em Tolstói, gostei da relação de Ana com os clássicos russos e como ela diz que eles “calavam minha consciência” e que ela “adormecia quase instantaneamente” após as leituras. Também apreciei a contraposição com as noites em que ela pegou no sono “enquanto esperava os ruídos acabarem”.

* Bom demais ver Ana X fazendo referência à frase inicial de Ana K.

* “Quando Kane caminha entre os espelhos, ele é composto de infinitos Kanes. Assim como todos nós, gosto de pensar.” Esse trecho pode soar meio clichê também, mas eu gostei. Vamos ver se essa frase cria a abertura necessária para as perguntas que você fez acima ou se apenas veremos outras facetas de Ana.

* Da importância da palavra “estúpida” (ou “estúpido”) para a total veracidade da voz feminina das protagonistas-narradoras dos livros de Antônio Xerxenesky. Não é misoginia, é apenas uma tese a desenvolver. Ou uma inspiração para uma coluna, sei lá.

Ufa! Cansei. Tenho mais nada pra falar não, meu caro.

Felippe: Se não há mais nada a acrescentar: Senhor X, entregue o resto da história da Senhorita X.