É impossível ler Suor, romance de autoria de Jorge Amado, publicado em 1934 a não ser sob a sombra de O cortiço, o clássico romance de Aluísio Azevedo de 1890. Tendo dito isso, creio que devemos, portanto, estabelecer como a obra do baiano não é um pastiche da do maranhense, mas sim uma expressão legítima e autônoma, fruto de um contexto histórico diferente e que tem muito a nos dizer tanto sobre a vida dos disposessed brasileiros (sim, estou sob a sombra de Steinbeck) quanto dos embates do século XX e da própria militância do autor.

Suor retrata, creio que com a mesma dose de honestidade e literatura que Cacau (1933), a situação de um casarão, onde vive uma porção de pessoas nas piores condições. As semelhanças não param por aí, a estrutura se assemelha a do romance de Azevedo também pela profusão de personagens, que se esgueiram pelos corredores lúgubres e nada asseados do casarão-cortiço nº 68. Como Luiz Gustavo Freitas Rossi escreve no posfácio (O romance da multidão e os fantasmas do casarão 68, uma análise recomendável) da edição da Companhia das Letras, Suor é um romance de multidão, não está focado na individualidade de um ou poucos personagens, mas na coletividade que habita o casarão.

Jorge Amado não poupa as descrições escatológicas do espaço fétido e praticamente inóspito que é o casarão, com seus minúsculos e infernalmente quentes quartos e seu pátio sujo. O ambiente encontra-se personificado nos tipos que o habitam, nas suas características e principalmente em suas mazelas, que se encontram em cada linha que Amado resolve sobre eles tecer.

Lavadeiras disputando roupas dos “patrões” para ganhar os míseros tostões que lhes garantem as parcas e não garantidas refeições; operários do porto e de construções, acostumados ao serviço braçal se vêem presos na falta de perspectiva de mudança ou de ascensão social ou de qualquer tipo de melhoria em suas vidas. Além desses, há um morador do lugar que teve os dois braços amputados por uma máquina; outro que luta com uma infecção na perna; uma senhora que vive de suas costuras e tenta poupar a filha de sua inglória sina, preservando-a das malícias dos homens que a cobiçam, já que a sua pureza é sua chance de conseguir um bom casamento e um passaporte para fora dessa vida sofrida e ingrata que levam.

Não bastasse a condição social que se lhes apresenta, também o impaludismo e a tuberculose os assaltam e fazem seus ralos orçamentos se exaurirem (ou serem insuficientes) para que se tratem. E assim, nessa toada, desgraçada e miserável que vão levando a vida, agüentando como podem, os infortúnios que chovem sobre suas cabeças.

O suor que serve de título ao livro é o mesmo que brota aos borbotões debaixo do telhado escaldante no quarto sem ventilação que chamam de casa. Da mesma forma que o cortiço de Azevedo exercia uma influência sobre seus moradores, infestando-os com as doenças e pestilências, corrompendo-lhes as esperanças; também o casarão nº 68 aparece como uma entidade pronta a lançar por terra qualquer esperança de melhoria ou de justiça. Mas é aí que surgem as diferenças entre os dois livros.

Jorge Amado viveu na ladeira do Pelourinho (local onde se localiza o casarão 68) e vivenciou a experiência desses sujeitos abandonados à própria sorte, mas, apesar da triste constatação de sua situação, o autor faz uso mais prático de sua literatura: quis que ela se tornasse a possível fagulha de uma explosão revolucionária.

A militância de Jorge Amado no partido comunista orientou seus esforços e sua pena para fazer de Suor um dispositivo suscitador de consciência, consciência de classe e da opressão em que esses sujeitos viviam. Suor está para os trabalhadores urbanos e para a coletividade assim como Cacau está para os agrícolas e para as percepções particulares da desigualdade.

Nesse caldeirão fervente, juntam-se trabalhadores explorados; negros livres da escravidão mas não do racismo e da opressão; mulheres sofridas, esculpidas pelos reveses da vida; moradores indignados com sua paupérrima vida e toda a multidão de personagens que, apesar de suas diferenças, encontram-se unidos pela condição social adversa.

Os embates políticos que movimentavam o Brasil na época de Jorge Amado diferem muito daqueles que estavam presentes no final do século XIX, na época de Azevedo. É interessante ver como a realidade mudou em alguns aspectos (novo cenário política, visão social diferente etc.) e permaneceu a mesma em outros (desigualdade, condição sociais adversas, marginalização etc.). O comunismo aparecia como horizonte de mudança mais pujante depois da Revolução de 17 e depois da difusão em terras brasileiras, tendo dilapidado profundamente a prosa de Jorge Amado.

(A partir daqui o texto contém spoilers)

A cena final do livro ilustra bem a combatividade e a promessa revolucionária que Jorge Amado enxergava no mesmo lugar onde Azevedo via “larvas no esterco”: uma multidão marchando revoltosa contra a polícia, reivindicando mudança e melhores condições de vida. A lacuna proposital foi deixada, como uma semente que se lança a terra esperando que brote e dê frutos.