Lembro de ter “ouvido” falar de Henri Barbusse pela primeira vez em algum texto do Gramsci que li no ano passado, se não em engano foi em algum lugar dos Cadernos de cultura. Gramsci até citou uma frase dele, algo sobre “revolucionar os espíritos”, certamente referência a sua militância comunista. Curioso a respeito desse autor, topei com um livro dele, Inferno, em um sebo que visitei e não pensei duas vezes antes de comprá-lo. A atenção de Gramsci não é injustificada, pois o livro consegue tocar fundo em nossos espíritos.

Barbusse não é um autor tão conhecido, embora seja considerado como um dos pioneiros da literatura francesa nos moldes do século XX. Sua obra mais famosa é Le Feu (“O fogo”, na tradução literal, e “Under fire” [Sob fogo] em inglês) publicada em 1916. A obra Inferno foi o debute literário do autor, em 1908, e causou polêmica quando de seu lançamento.

A história gira em torno de um homem que, passando a habitar um quarto de hotel no qual há na parede um buraco de onde é possível ver o quarto ao lado, ocupa a maior parte de seu tempo observando as vidas alheias. Como era de se esperar, os eventos que se passam no quarto ao lado estão longe de serem ordinários. A vida do protagonista (seria ele o real protagonista?) deixa de ter sentido autônomo, passando a depender das vidas que se desenrolam no quarto ao lado.

Barbusse explora o voyeur que existe em cada um de nós. Assim como o sujeito que passa horas e horas a espiar os outros, também nós nos tornamos reféns desse hábito que viola a privacidade alheia. Mais do que bizarrices, Barbusse explora voluptuosamente a sensualidade, já que o quarto é usado em vários momentos por diversas pessoas para fins amorosos, digamos assim.

Casais em tórridos romances e casais em crise se sucedem no hotel, fornecendo um banquete para os gulosos olhares do sujeito do quarto ao lado. A monotonia que se anunciava naquela vida solitária no hotel acaba se mostrando um espetáculo privado, onde além de casais, também se apresentam um poeta, uma sensual mulher em busca de prazer solitário e um médico comunicando pesarosas notícias a seu paciente.

Mais do que bisbilhotice per se, Barbusse explora a sensualidade, a riqueza e a complexidade da vida humana. Cada ocupante do quarto ao lado desempenha o papel de catalisador para alguma epifania ou reflexão do voyeur. Através do que se passa no quarto ao lado, Barbusse explora uma faceta da existência humana: a fragilidade de seus laços, a beleza da relação amorosa, o pesar da revelação de uma limitação fisiológica (doença), a “natureza” social dos homens, nossa pequenez e nossa grandiosidade, todas postas nesse cubículo aparentemente desprovido de quaisquer atrativos.

Inferno é um livro que parece caminhar sem rumo, o que lhe importa é caminhar. Não existe uma questão perpassando todas as situações vivenciadas pelos hóspedes do hotel, não existe um fio narrativo único, todos eles são diferentes aspectos da riqueza da experiência humana e parecem querer despertar em nós o complexo e multifacetado fenômeno que é a nossa existência.

Apesar de Inferno não gozar daquela unidade dos grandes clássicos, cuja amarração é tão fenomenal quanto aos temas nos quais toca; é sua relativa confusão que o faz tão atraente. Num mesmo livro, numa mesma trama, Barbusse consegue falar desde propriedades e características biológico-fisiológicas do câncer até a ínfima representatividade dos seres humanos em relação ao cosmos, passando ainda pelo extremamente diminuto e estarrecedor universo atômico e pelo “mundo” criado pelos homens através de sua sociedade e dos frutos de seu trabalho e pensamento.

Barbusse parece querer colocar o homem em perspectiva cósmica e natural, compreendendo-o tanto em seus enquadramentos físicos e materiais, quanto em suas características metafísicas e intelectuais. Apesar da densidade das reflexões não ser a mesma em todos os momentos, elas revelam um escritor cujo espírito investigativo acerca do homem e seu mundo está faminto por conhecer e compreender cada vez mais.

A aurora do século XX deve ter sido uma época de grandes esperanças e muitas potenciais decepções. A Primeira Guerra Mundial estava sendo gestada, os ímpetos revolucionários estavam espalhados pela Europa com as promessas do comunismo, as nações se expandiam em seus imperialismos, as lutas de trabalhadores colocavam a mudança na pauta do dia, e os intelectuais e artistas hauriam desse contexto para produzir seus retratos e darem forma a seus anseios. Barbusse estava nesse meio, participando dos círculos intelectuais franceses, discutindo projetos de sociedade e militando pelo mundo que achava melhor.

A crença no homem como senhor de seu destino tinha deitado raízes profundas na mente das pessoas, mas ela chocava-se constantemente com o mal-estar do mundo que ele havia criado, cheio de máquinas, desigualdades e opressão. De um lado o homem poderoso, criador e promissor; e do outro sua face reversa, destruidora e condenatória, ambas convivendo, entrechocando-se e fazendo crescer e falir crenças na vontade humana diariamente e a cada geração.

Inferno parece se inserir nesse contexto de uma forma similar a outros livros que também exortam a vontade humana como potência transformadora, como – apesar das diferenças – Demian, de Hermann Hesse, e O jovem Törless, de Robert Musil. Parecia haver algo “no ar”, algo que as esteiras mortíferas da Primeira Guerra Mundial receberam com tiros e mortes.