Uma das melhores formas para se conhecer um escritor é através de seus contos. O conto é uma forma narrativa de menor extensão, menor que romance, novela e maior que uma crônica (existem controvérsias, é claro). Na América Latina existem contistas reconhecidos mundialmente como Cortázar na Argentina, Quiroga no Uruguai, Guimarães Rosa no Brasil, entre tantos outros. A equipe Meia Palavra reuniu alguns nomes de diversos países para que os leitores conheçam grandes autores latinoamericanos através de seus contos. Há contistas da Argentina, Guatemala, Colômbia, Chile, Paraguai, Uruguai, México, Peru e Cuba. A data é significativa também. No dia 25 de Maio comemora-se a Revolução de Maio que marca a luta pela independência argentina da Espanha.

Liv: Gabriel García Márquez (Colômbia), O Avião da Bela Adormecida (Doze Contos Peregrinos): Todo mundo conhece um livro de Gabriel García Márquez, mas o que talvez muitos desconheçam são seus contos. No livro Doze Contos Peregrinos temos pequenas histórias que poderiam estar dentro de qualquer um de seus best-sellers. O meu favorito é O Avião da Bela Adormecida onde o autor se vê ao lado de uma beldade adormecida e ele, assim como em Memórias de Minhas Putas Tristes toma inconformado a ciência de sua idade e de que nem sempre o amor é possível.

Pips: Julio Cortázar (Argentina), Reunião (Todos os Fogos o Fogo): Um dos melhores contos da coletânea Todos os fogos o fogo, este conto narra em primeira pessoa o começo da guerrilha em Cuba e do grupo de guerrilheiros liderados por Ernesto “Che” Guevara. Ou seja, é um conto escrito por um argentino (belga, ele nasceu na Bélgica, como dizem, por “acidente”) sobre a revolução Cubana – que tem como figura um argentino – escrito em Paris. Che é o médico asmático que narra essa história num estado febril que culmina em situações delirantes ao passar por incríveis apertos. Não é um conto político, é social e demistifica alguns valores. É curioso notar que cinco anos após publicar Todos os fogos o fogo, Cortázar foi “excomungado” por Fidel Castro, o que causou uma decepção sem fim no escritor argentino.

Horacio Quiroga (Uruguai) – A galinha degolada (Contos de amor, loucura e morte): O escritor uruguaio foi um grande expoente na América Latina quando o assunto era o fantástico e macabro. Quiroga conseguia conduzir os leitores em uma linha de raciocínio quase inocente que camuflava as reais intenções de seus personagens. Em A galinha degolada, temos um jovem casal apaixonada que sofre uma maldição – não fantástica, mas médica: seus filhos após uma certa idade sofrem um ataque ficando idiotas, com as bocas abertas e olhares perdidos, um atrás do outro. A condição familiar gera discussões sobre quem seria o culpado daquela doença aterradora: pai ou mãe? O desconforto gerado toma proporções absurdas até a chegada de uma menina e com todos os cuidados o casal faz questão para que ela não se relacione com os irmãos e tão pouco lhe falte algo para não sofrer dos mesmo males. Quando o leitor se depara com o crescimento da caçula e o tratamento diferenciado – os filhos idiotas são deixados de lado com a empregada (que não tem coragem de banha-los), a trama desdobra num suspense incomôdo e num final chocant

Luciano: Rodrigo Fresán (Argentina), Pruebas Irrefutables de Vida Inteligente en Otros Planetas (La Velocidad de las Cosas)- “Quando for grande eu quero ser a pessoa que descobrirá provas irrefutáveis de vida inteligente em outros planetas” é o que responde a pequena Hilda, de 8 anos, quando lhe perguntam o que quer ser quando crescer. Gerada na noite me que seus pais, dois modelos argentinos, decidiram não ter filhos após assistir um documentário sobre a situação apocalíptica do mundo, nasceu prematura- com apenas sete meses- e morta. Hilda sobreviveu e nunca chorou, e é muito feia e acorda gritando no meio da noite não por causa da morte de sua mãe, Diana, mas pelo aumento do buraco da camada de ozônio. Essa história de rejeição, sabedoria e estranheza é uma das mais icônicas do universo bizarro e singular do escritor argentino, amigo pessoal de Roberto Bolaño- com quem teria escrito um livro sobre escritores de ficção científica, caso o chileno não tivesse falecido prematuramente. Além disso apresenta-nos essa garotinha feia e o planeta Urkh-24, que aparecem- com algumas variações, como a máscara de tartaruga ninja- em outros de seus contos e romances, além de explicar o fato de os modelos serem também argentinos transformá-los em algo diferente de qualquer outra categoria humana.

Augusto Monterroso (Guatelama), Mr. Taylor (Obras Completas y Otros Cuentos)- Um americano acaba vindo viver na região amazônica e, depois de ser conhecido como ‘el gringo pobre’ acabou descobrindo o mercado de cabeças- que, graças uma parceria com um tio, logo passarem a ser exportadas para os EUA em grande escala e tornaram-se bastante populares. Acontece que em certo momento as cabeças começam a escassear e o governo precisa tomar atitudes a respeito- afinal, a venda de cabeças para os americanos era o principal motor da economia nacional. Quiçá mais conhecido por seu curtíssimo conto ‘El Dinosaurio’, Monterosso faz uma crítica espirituosa e criativa ao modo como a economia e a política funcionam na América Latina.

Lucas: Alejo Carpentier (Cuba), Viaje a la Semilla (Guierra del Tiempo y otros relatos) – O conto lembra bastante a estrutura narrativa utilizada em O Curioso Caso de Benjamim Button, do Fitzgerald, pois a história é contada de revés. O personagem principal, Marcial, é introduzido misteriosamente na história, onde testemunha a demolição da casa onde passou grande parte de sua vida, porém, a noite essa casa se reconstrói por mágica (e aí entra a boa e velha dúvida constante do realismo mágico sobre a realidade mágica, o estranhamento, a fantasia onírica e assim por diante, suscitando múltiplas leituras) e a história do velho vai sendo contada ao contrário. O mérito de Carpentier está não somente na condução talentosa da narração ao contrário, muito bem encadeada (a forma como ele faz as fases da vida irem retrocedendo é de uma harmonia invejável) como também a capacidade de manter a magia ao mesmo tempo próxima e distante, no conteúdo e na forma. A viagem ao reverso é uma empreitada intrincada, que desafiou tanto o autor quanto o leitor. O fato de Carpentier ser um amante da arte e estudioso dela só aumentam a beleza “plástica” e a semiótica que suas palavras causam.

Augusto Roa Bastos (Paraguai), El País donde los niños no querían nacer (Cuentos para la Humanidade Joven) – Publicado postumamente, esse conto tem uma profunda porém subjacente crítica aos rumos políticos do Paraguai (que em alguma medida reflete uma situação compartilhada por diversos países da América Latina) pois o país onde se passa a trama, mesmo inominado, é prenhe de significado se considerarmos o contexto político de ditadura e de terror de Estado que se perpetrou nessas paragens. Um rapaz, andando por uma região deserta, encontra uma velha que lhe conta uma história sobre como aquela região veio a ficar desolada, ao passo que descobrimos que os mandos e desmandos de um governante anterior causaram tal terror e mal estar na população, que os bebês se recusavam a sair das barrigas de suas mães, condenando o país a lentamente sucumbir conforme as pessoas fossem enevelhecendo e morrendo. A sensibilidade de Roa Bastos, aliado ao tom de fábula e de fantasia que permeiam o conto, consegue dimensionar todo uma relação de forças que perpetrou o temor na população e como essa forma de conduzir o governa estava condenando o futuro da humanidade. O desfecho do livro, que emaranha mais uma perspectiva simbólica ao destino do país sem rebentos, mostra que ainda havia esperança no autor, que ele materializava na sua literatura.

Tiago: Juan Rulfo (México), E nos deram a terra: Não à toa este escritor dá nome ao mais importante prêmio latinoamericano, com o qual todos os escritores desta lista (salvo Bolaño, que não viveu o suficiente) foram agraciados. Neste, vemos quatro homens receberem, como prêmio por suas contibuições ao governo mexicano, um pedaço de terra enorme, imensurável, gigantesco – e absolutamente improdutível. Ler Rulfo é imaginar um Kafka no meio do deserto.

Juan Carlos Onetti (Uruguai), A cara da desgraça: Onetti (1909-1994) talvez seja o mais importante escritor uruguaio. Ao contrário de seus contemporâneos latino-americanos, não estava preocupado com um realismo “mágico”, mais uma realidade dura, vingativa, cinzenta. Instaurou algo que depois seria lembrado como uma tradição anti-Macondo, com a criação da cidade de Santa María, cenário de vários dos seus romances. Esse conto é particularmente significativo, pois mostra um homem de meia-idade apaixonado por uma jovem, que conhece durante suas férias à beira-mar. Quando descobrem o corpo dessa moça boiando na praia, esse homem prefere sumir toda a culpa, mesmo que não seja (ou não saiba se é) culpado.

Julio Rámon Ribeyro (Peru), Só para fumantes: Nesse conto, percorremos a vida do importante escritor peruano (1929-1994) através das diferentes marcas de cigarro que fumou ao longo da vida, como se cada mudança exigisse um tipo de tabaco diferente. Enfim, um conto para tempos ultra-saudáveis. Esse importante autor, pouco conhecido no Brasil, é algo mordaz, irônica e dá uma bom apanhado das margens e marginalidades latino-americanas.

Dindii: Mario Vargas Llosa (Peru), Os Chefes – Llosa já publicou desde ensaios até romances, apresentando um traço biográfico em várias de suas obras. Os temas mais recorrentes em sua escrita são o da liberdade do indivíduo e luta contra opressões políticas e sociais do Peru. “Os Chefes” é o primeiro livro do autor. Ele reúne seis contos e, como ele mesmo declara, trata-se de “um pequeno microcosmo do que viriam a ser o resto dos meus livros.” Neste material, Llosa passeia pela pela infância e juventude de um grupo de amigos na escola e todos os tipos de aventuras que eles podem viver. Ele também flerta com o tema da violência e rebelião.

Anica: Roberto Bolaño (Chile), O Retorno (Putas Assassinas): Se um livro só já é pouco para conhecer Bolaño, imagine um conto. Pegue aleatoriamente qualquer um da coletânea Putas Assassinas e você verá uma série de temas e estilos diferentes, como se dentro de um autor coubessem vários. Dessas múltiplas faces uma das que mais chama a atenção é como Bolaño consegue circular entre a morbidez e a comédia com incrível facilidade, assim como lida com o fantástico. Isso pode ser visto em O Retorno, que abre de forma genial: Tenho uma notícia boa e uma má. A boa é que existe vida (ou algo parecido) depois da vida. A má é que Jean-Claude Villeneuve é necrófilo., indicando a situação do protagonista: um morto que teria o corpo “abusado” por um necrófilo. Extremamente bem-humorado, pode não representar tão bem a aridez e a melancolia de alguns textos de Bolaño mas definitivamente vale a leitura

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