Kafka é sem dúvida uma das figuras mais famosas e perturbadoras da literatura. Seu modo lacônico porém tonitruante, que revela nuances sombrios em cada narrativa, angariou, merecidamente, seu lugar no cânone universal.

Na colônia penal é uma de suas obras mais famosas e, talvez, a que mais diretamente entra no terror aberto, no macabro, embora a tensão e a suspense digna de pesadelo encontrem-se inscritas em todas as suas obras. Na colônia penal foi uma das primeiras obras que Kafka produziu e segundo Modesto Carone, foi intensamente influenciada por uma obra pornográfica sádico-anarquista de Octave Mirbeau de 1899, intitulada Le jardin des supplices, em que flagelos, sadismos e toda a sorte de horrores desfilavam.

Os personagens dessa obra não têm nome, são chamados simplesmente de: oficial, explorador, soldado e condenado. Somos introduzidos (ou seria melhor arrastados) em uma paisagem desoladora e deserta, onde estão o oficial da colônia penal, um soldado às suas ordens, o explorador estrangeiro e o condenado, todos ao redor do aparelho executor inerte. Visto que o estrangeiro está em visita a colônia penal para conhecer melhor os métodos e procedimentos usuais do lugar, o oficial não poupa detalhes para apresentar o funcionamento do julgamento (completamente injusto) e do aparelho que irá infringir a pena ao condenado.

A impassibilidade do oficial ao longo da explicação, em que celebra os métodos de que fazem uso, choca não só o estrangeiro como também o leitor, pois o aparelho que deve executar a pena é digno dos mais macabros filmes de horror. O condenado, que desobedeceu a uma ordem direta, foi julgado (de forma bizarramente arbitrária) e condenado a se submeter à máquina que, ao final de doze horas de dor e sofrimento excruciantes, irão matá-lo como punição a sua inobservância da lei.

Kafka nos mostra aqui toda a perturbação latente de sua obra, que aflora pontualmente, mas que se arrasta nos subterrâneos de cada palavra e de cada parágrafo. Somos convidados aqui a presenciar a tragédia em forma de literatura. Na colônia penal é o relato incomodativo e mórbido dos meandros jurídicos e da punição, que se apresentam quase como uma força autônoma, onipotente e que, pelo fato de estar nos mais diversos rincões da sociedade, fazem da vida uma constante tensão.

Cada livro de Kafka é um pesadelo que deixa uma cicatriz no espírito. É impossível lê-lo e não se sentir afetado, ainda mais pelo tom quase profético que sua literatura acabou ganhando com o passar do tempo. Seus estudos de Direito lhe proporcionaram um contato intenso com as leis e a forma jurídica e burocratizada com que a sociedade está organizada, fazendo-o enxergar que todos estamos à mercê de sermos enredados nos labirintos burocráticos, podendo, inclusive, sucumbir de forma desesperadora a eles.

A vida do autor contribuiu para que sua literatura assumisse os contornos que possui, pois tudo parecia conspirar contra sua felicidade e seu bem estar, seja a sociedade burocratizada e impessoal, seja o pai tirânico ou a rotina árdua de trabalho. Kafka tinha tudo para explodir, mas acabou implodindo, e como um buraco negro cuja tragédia era o fulcro central, absorveu toda a luz e restaram-lhes trevas. Ele transpôs para sua literatura uma visão sui generis de um mundo mais pujante e desesperadoramente real do que gostaríamos de admitir.

Na colônia penal mostra o horror de forma aberta, crua, requintada com a crueldade de assassino para chocar e mostrar a perversidade e injustiça inapelável que o cercavam de todos os lados, esgueirando-se para dentro de sua obra tanto como em relação a sua vida.

Não há finais felizes em Kafka, a fatalidade que se mostra no final de cada pesadelo literário talvez fosse sua tentativa de acordar, tarefa que, ao que parece, ele não conseguiu cumprir.