Como uma colega aqui do Meia Palavra já fez uma resenha bem interessante do livro Tóquio Proibida, de Jake Adelstein, sinto que vale mais a pena eu aproveitar esse espaço resenhístico [sic] para me perder em digressões nada acadêmicas acerca da escrita de não ficção. E claro, falar um pouco das minhas impressões do livro. Tudo daquela maneira desregrada e confusa que costumo aplicar em qualquer resenha que não seja para um veículo mainstream. Viva a internet. E tal.

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Engatei a leitura de Tóquio proibida logo após terminar outra obra de não ficção, também publicada pela Companhia das Letras, Retrato de um viciado quando jovem, do agente literário viciado em crack Bill Clegg. Escrevi uma resenha empolgadíssima sobre o livro do Clegg, elogiando seu talento de prosador e sua sinceridade brutal. Jake Adelstein, o americano judeu que consegue um emprego em um dos maiores jornais japoneses, também merece ambos os elogios.

De certa forma, tanto o livro de Clegg como o de Adelstein funcionam (e entretêm) por um motivo: ambos apresentam um narrador/personagem sensacional. São pessoas engraçadas, frustradas, encrencadas, cheias de defeito. Claro, mas há um detalhe: nenhum deles é um “personagem” no sentido mais restrito do termo. Estamos falando de livros de não ficção, de memórias autobiográficas.

Sabemos, desde antes de começarmos a leitura da primeira linha, que os eventos narrados no livro supostamente aconteceram de verdade. Tomamos sua veracidade como ponto indiscutível. Não obstante, se o narrador se revelasse um sujeito arrogante, talvez essa crença cega na veracidade desabasse. Porém, como Adelstein pratica uma sinceridade imperdoável (consigo e com os outros), acreditamos em tudo. O que, vamos combinar, é um tanto perigoso.

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Quando algo toca a página (isto é, vira texto), automaticamente se transforma em ficção. Essa foi uma lição que eu aprendi, pela primeira vez, com o filme “Histórias proibidas”, de Todd Solondz. O mesmo evento pode ser narrado por mil óticas diferentes, cada um construindo a sua versão do fato. Na hora de escrever um livro que se propõe a ser “não ficção”, uma série de cuidados são necessários. Não se transcreverá, por exemplo, o que alguém “pensou”, já que não temos acesso ao pensamento do outro. No máximo se dirá: “Fulaninho disse que, naquele momento, pensou tal coisa”. Para escrever uma obra de não ficção, portanto, um autor sofre muito mais limitações em relação aos artifícios que pode usar na hora de construir seu livro. Adelstein não podia inventar fatos que não ocorreram, nem poderia, como Flaubert, invadir os procedimentos psicológicos de outra pessoa que não o narrador em primeira pessoa. Ele terá que dar um jeito de criar personagens interessantes a partir da vida real, com um número bastante limitado de recursos literários, se quiser que o livro estabeleça uma ligação emocional forte com o leitor.

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O legal de Tóquio proibida é que o tema se revela tão fascinante que mesmo que Adelstein não fosse tão bom de prosa, ainda assim seria um livro instigante. Como diz o ditado (e a música do Bad Religion): “Às vezes a verdade é mais estranha que a ficção”. Adelstein se revela um estrangeiro (um gaijin) disposto a entender, nem que seja um mínimo, a cultura japonesa. Ele não fica naquela posição passiva retratada, por exemplo, no filme Encontros e desencontros, onde a cultura japonesa se mostra impenetrável, incompreensível, e os protagonistas apenas a observam curiosos, distantes. Adelstein vai para o Japão com o intuito de morar e trabalhar lá. Ele se vale de sua característica de estrangeiro para penetrar no submundo dos bares de acompanhantes e das facções da máfia yakuza. Como bem apontou Dindii em sua resenha, a yakuza não é tratada como esperamos: não haverá descrições de carnificina, gente cortando o dedo por traição e tudo aquilo que vimos nos filmes de Takashi Miike e de Takeshi Kitano. O ponto de vista de Tóquio proibida é limitado ao seu narrador. Conhecemos, portanto, os bastidores: a relação entre jornalistas e a polícia, a tentativa (muitas vezes frustrada) de Adelstein de conseguir um furo etc.

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Nunca li os “clássicos” do jornalismo literário. Nunca li Gay Talese. Suponho que seja uma inspiração para Adelstein – e para 99% dos jornalistas que tentam fazer algo nessa linha. Mas, voltando à questão do narrador sincero: Adelstein é um trapalhão. Ele não é – ou não tenta criar a impressão – de que é um grande jornalista. Trata-se de um sujeito muito esforçado, sem dúvida, e isso desvia as atenções do livro Tóquio proibida. A obra acaba não sendo apenas sobre o submundo japonês (assim como Retrato de um viciado quando jovem não é só sobre o vício em crack), mas sobre o esforço de um jornalista em tentar se integrar em uma outra cultura, em tentar se superar em um terreno alheio (e muitas vezes inóspito). E em fracassar — e admitir esse fracasso. Fracassar de maneiras melancólicas: descobrir-se em parte aniquilado pelo universo que investiga. E revelar isso a nós, leitores sortudos, que ficamos sabendo de tudo do conforto de nossa poltrona.

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Escrever um livro de não ficção com tintas autobiográficas há de ser uma das tarefas mais difíceis. Para isso, é preciso viver uma vida digna de ser narrada. Não “digna” no sentido de fazer as coisas certas, afinal Adelstein coleciona alguns dolorosos equívocos que lhe incomodarão a consciência por um bom tempo. Porém, parece necessário se lançar em uma vida interessante. Ao passo que a maioria dos ficcionistas contemporâneos (e aqui me incluo desavergonhadamente) está cada vez mais focada em coisas muito próximas de seu universo (nem que seja a cultura pop, a própria literatura, ou a vidinha de classe média), os não-ficcionistas (tomando como corpus agora apenas Adelstein e Clegg) fizeram o que alguns escritores do passado — pelo menos é o que a história nos conta — buscaram realizar: lançaram-se à aventura sem medir os riscos. E sobreviveram para contar a história.

Título original: Tokyo Vice
Preço: R$53,00
Tradução: Donaldson M. Garschagen
Capa: Elisa v. Randow
Páginas: 456

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

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