Nas palavras do próprio Faulkner, “Absalão, Absalão!” é a história de um homem que queria um filho e teve filhos demais, teve tantos que eles acabaram lhe destruindo. O personagem central, Thomas Sutpen, por motivos que vão sendo descortinados ao longo do romance, dedicou sua vida à construção de uma dinastia, mas foi vencido pelas circunstâncias. E não estou me adiantando: essa é tanto a síntese quanto o ponto de partida da história. Faulkner desenvolve sua narrativa a partir de uma única e natural certeza, o presente, e o que se conhece à altura do ano 1910 é apenas a verdade da derrocada de Sutpen. A função do leitor, a partir daí, será resgatar, através da visão de uma série de narradores encadeados, uma compreensão mais completa dessa tragédia individual que em muitos aspectos reflete a queda de todo o modo de vida do Sul americano no século XIX.

Na primeira cena, temos Quentin Compson, que retorna de O Som e a Fúria, no gabinete da Srta. Rosa Coldfield, uma velha poetisa, irmã mais nova da esposa de Sutpen e mais tarde também sua noiva. Ela se propõe a narrar-lhe a história do “demoníaco” Cel. Sutpen, desde o momento em que surge em Yoknapatawpha, acompanhado de um bando de negros selvagens, que não falavam inglês e andavam nus, e um arquiteto francês, para erguer uma fazenda em um terreno de 100 milhas quadradas obtido de índios americanos. Em seguida, dando prosseguimento a seus planos, Sutpen teria conseguido, em condições obscuras, a mão de Ellen Coldfield, a qual lhe daria então dois filhos, Judith e Henry. Muitos anos se seguiriam em que suas ambições permaneceriam imperturbadas, até que a aparição de Charles Bon, colega de Henry na Universidade do Mississippi, provocasse a destruição dos irmãos e, concomitantemente à eclosão da Guerra de Secessão, também a de Thomas Sutpen.

O relato de Rosa Coldfield ainda deixa muitas lacunas, e muitas delas são respondidas, e outros elementos reinterpretados, pelo Sr. Compson, pai de Quentin, a partir do que lhe fora narrado por seu próprio pai, que além de testemunha daqueles eventos, viera também a conhecer muito sobre a infância e juventude de Sutpen. Todas essas informações, por sua vez, transformam-se ao longo do livro em parte de uma conversa entre Quentin e Shreve, seu colega na Universidade de Harvard, enquanto os dois se esforçam para desvendar os últimos elementos da tragédia. Pouco se conhece, portanto, sobre as motivações dos personagens, uma vez que a maior parte dos eventos se encontra enterrado em 50 anos de passado, e tudo vai sendo retrabalhado de narrador em narrador, até que o leitor se veja enrodilhado nas mesmas especulações. Segundo Faulkner, no entanto, embora nenhum narrador individual seja capaz de enxergar a verdade, o leitor sim, de posse de todas essas visões, se torna capaz de uma compreensão superior e verdadeira da história.

Como nas principais obras de Faulkner, os aspectos estruturais podem ser bastante frustrantes em um primeiro momento. A sequência não-cronológica dos fatos narrados, a alternância entre os narradores, as inevitáveis repetições de uma representação do discurso oral, tudo isso faz com que o livro esteja além de uma simples e única leitura. Relendo alguns trechos, por exemplo, me dei conta de que alguns elementos só poderiam ser completados por outros fatos narrados 300 páginas depois. Ainda assim, ou até mesmo por isso, uma leitura extremamente recompensadora, com propósitos ambiciosos que raramente são vistos. Terminado o livro, a tragédia do Cel. Sutpen se multiplica em interpretações, como a de uma derrota da vontade contra as circunstâncias históricas, ou a danação do homem por seu próprio caráter, ou mesmo a maneira como os piores vícios de uma sociedade foram capazes de trazer a ruína do Sul americano.