Publicamos hoje “Guará”, um poema inédito de Hugo Simões, poeta, tradutor e pesquisador. É autor de dois livros publicados até o momento, Pêsames (Dybbuk, 2016) e Perdão (Contravento, 2019).


GUARÁ

o ventre verte o canto da ave solar

“vem mim-mirim
vem mim-mirim
ariranha rola o rio
o céu o sol ao mar
ariranha rola o rio
o céu o sol ao mar
vem mim-mirim cantar
mim-mirim vem mim-
mirim cantar mim-mirim”

nasce araci guará-mirim num rasgo
de paraná              a voadeira corta o
silêncio do rio e bicos bicam beijos
vinda boa divina vida urucum solar
voa guará solitário deixa o berço em

céu toca as penas no pé de Tupã e
ouve o trovão gargalhar           se jo
vem corre as pernas dispensas no
vento à volta verde do pôr-de-terra
em baía desfigurada paisagem    ali

escuta o verbo vertido no verde véu

“voa alto guará
pena araçá-açu
voa alto guará
some o seu azul”

I.

e soa vertigem voa rodo
pia ainda sem canto guará
mirim na distância das ara
ucárias    rubra se urticária
sim    ouve no colo xamâ

nico o sulco da planta ima
rgem da velha ave que pare
o ovo do ovo que é

“sozinha sozinha guará mir
im miríade espelho teu mar
teu fim alá guaratuba ali gua
rapuava se ouvia se ouvia g
uarasoava    sozinha sozinha

                        teu canto            paraná
                        flores férteis vasculham
                        o sonho animar

                        tua roupa te tem
                        é mundo e será

                        guará mirim extinta
                        guará mirim exanima

escuta pequena o chão que não vês
escuta teus ossos tua carne nudez

escuta pequena a rasga vã
escuta também arandu porã

Jakaira cai e esconde
bate a asa        solme”

o corpo da imagem escorrega no ar
guará solitário aprende voar cheira
hortênsia      ipê      maracujá      o olh
o do tapir vira jaguar      tem medo
da gente que veste a pele do mato
do bicho        o fim há de chegar até
os altiplanos melancólicos do para

II.

antes de awa´rá mirim guará
escura branca pintinho pia piá

antes de awa’rá mirim guará
é já rubra dentro porque já

voa dentro imagem si de guará

quieta solitária paisagem serra
na escuta o longe o longe guar

africana também mangue tu
do lá é aqui o animal sem pelo

pela a vida e arrasta pelo chão
a pele morta não awa’rá de

lá longe o aqui vê pintinho piá

o sítio do mundo é roça barroca
da moça        da moça que salva

na boca a boa a boá       na boca
que bica o pato o marreco o as

sum e o guará        aqui e ali gua
rapari ou parnaíba        nasce mo

rre a gente da pele vermelha que
brinca voa voá        aqui ali awa´rá

voa sozinha avoa a ave pintinha
guará

III.

soa ventre peixe o canto xonklang
cresce na mata o mapa do estar q

ue é awa´ré        nasce pinta cresce
magma soa o canto caiçara e caça

a cura na planta viçosa do mangue
que escapa a vida cimenta que mo

rte        guará solitário se pluma jam
bo é canto que soa quase alvoroço

“bate pena nas franja do ar
bate teu peito no mim guará

canta a tamanca que vorta
o luar        canta a fia da fia

do ar”

empina a íbis-escarlate nos rumos
do paraná        voadeira acorda do

sonho os meninos do povo guara
ni do lado de lá        ouço o piá de

guaíra brincar na beira do rio re
presa        um lambari olha os ói

e tenta escutar

IV.

o lobo se avizinha da ave que
pousou na grade        “ei” diz o
lobo-guará        extinto do sul
como a ave vermelha        “ei”
diz a ave anima e ouve o la
mento do lobo que nasceu
presa de imagem captura

“no mato o mate
bebe a sede e dorme

a pata acalma savana
do dia que vem

hoje o mundo é homem
e lobo é lobo de nada

ouça bem a bicharada
que o barulho cessará

come a semente que
te cabe antes que a

semente vire mar”

no olho o o
utro derrama
uma míngua

guará veste
anágua e
raia pra lá

V.

a moça que canta palavra de índio
desde ayvu marã´ey é branca mas
sente        amizade é coisa de longe
caduca em grilo e gafanhoto        h
oje as veias da mata encobrem-se
do sujo        as veias da serra lembr
am dos dias que foram        quanto
quando um rumo passa do céu a
ave solitária mira abaixo o mapa

todo nome aqui é índio
e índio é toda comida

toda anima aqui é índio
e índio é toda vereda

na boca da gente e da
gente sambaquis e

arabescos toda gente
que véve é índio e é

VI.

como esconde xetá um berço
raigado de mate e lona um co

rte na raça é nada é lança o d
eixa que chove à margem um

ventre aninhando em si guará
doente de tudo deitou no céu

do rio e ouviu a velha cantar

“forte guará-mirim
forte guará-mirim
pluma açu de vestir

             esgarça o vento e sói
             aqui não jangada
                          no mangue
             dos antigos fomos
             muitos guará-mirim
                          no mangue
             dos antigos ouvia
             cutia e sabiá        ou
             via             no mangue
             a gente da gente
             na pele dos paraná

forte guará-mirim
caça dia no ninguém
esconde na barriga
o mundo que não vem

             o desenho tupi do
             mim que visita teu
             ninho guarázinh é
             eu o rio que te vê
             é eu a pinha que
             estoura teu medo
             no frio é eu tua
             avó e tua mãe que
             o dia será você

guará-mirim forte
aqui é mesmo ontem
             não mede
             não fume
             a fumaça do homem

guará-mirim forte
correr o mundo só
correr do bando que
não existe correr não

                          no mangue
             antigo tukano árbol
                       tudo tupi aqui
             mas gente esquece
                          no mangue
             arara aroeira rá rá
             tudo tudo domínio
                               dominar

guará-mirim forte
sozinh guará-mirim
um dia será eu
e tudo será teu

o mundo do guará e estrela
ninguém vê        tudo pele d
e sol guará cortando tropo
tropo de tudo paraná        al
i é suco e semente        no m
undo tudo imagem de tudo
tupi sonha e anda a crosta
da terra é pé e terra

                        então avoa guará
                       avoa que o vento
                       bom te roça a pluma”

acorda na cura e jorra
e jorra awa’rá solitário
envia envoa e come a
formiga azul oferecida

por quem

VII.

a ave urucum solitária ao sul
enrosca palha no bico e escr
eve nas nuvens três dias ava
nte       os bichos se empulgam
curiosos do projeto das plum
as dobradas       dado cansaço
guará cai na lama da chuva
e assombra o corpo as pint
as que vê       o olho da que
come a lua da sem kawík
a dos que dizem yanumaka
       a bicha grande comedo
ra de onceiro olho inca pr
esa serrana

“passarinh vermei       nunca
vi solzin brilhar       guará n
ão mas você guará       ma
mãe falava       da ave solar

pia piá cai mundo       e aqui
tua raia trambuca de tudo

guará nunca comi     é tri
ste o lamento do que não
existe mais       mamãe co
mia gente e cutia     guará

ausculta que o tempo pou
ca       pia piá cai mundo-pia”

awa’rá fraca cai-cai e cobr
eja       vai caindo no sonho

amarelo dos ói-jaguar escu
ta distante as patas do bic

ho vir pra cá e dorme no longe
do chão que anda pela bo

ca do jaguar       os ói tris
te vão subindo a penara

da nos montes da serra
do mar

VIII.

nas serras dia acorda sem
ninho guará-açu agora ro

xa peito urucum
vive o sol entre

mato do resto marumbi
peabiru tudo aqui vaza

guara-açu excobra e des
dobra de si um riachin

paraná-pintinho
guará escorrega

da boca da onça lunar
guara-mirim e vai escorr

endo toda sol até o mar
bico beijante no solo so

lar guará
vira açu

açu de toda gente
vermelha do céu solar

que nadou nas veias
dos paraná       “guará

mirim extinta
pra virar rio

da gente que ainda tá”
é assim que se lembra

e alembra no paraná

da oca sem fim
de palha vermelha
escrita de nuvem
corre o rio da gente
que avoa


Créditos da fotografia: Lucas Tokikawa, 2019.