Imagine que antes de 1839, a pintura era a única forma de se registrar o mundo através de imagem. Um retrato, por exemplo, era uma peça rara e restrita às famílias que possuíam grande poder e dinheiro, sobretudo se fosse feito por um pintor famoso. A fotografia permitiu que esse panorama mudasse e de 1839 pra cá, ela evoluiu e se tornou acessível a todo o tipo de pessoa, passando desde o primitivo, inovador e quase mágico daguerreótipo até as câmeras digitais.

Mas o que mais interessa aqui não é exatamente a evolução tecnológica, e sim a mudança social que a fotografia inaugurou. Sua disseminação permitiu o registro de todo o tipo de momento, seja uma dança, um encontro familiar ou um grande evento e, mais que isso, todo tipo de gente, tornando-se uma importante ferramenta de análise sociológica. Pierre Bordieu, no livro Un art moyen, a definiria como uma prática social de formação de identidade coletiva.

Além disso, ela guarda fielmente um instante de realidade. Uma fração que, em qualquer tempo futuro, pode ser absorvida, interpretada e até recriada. O livro Por trás daquela foto trata exatamente disso. Para a realização do projeto, oito autores foram convidados a produzir um texto a partir de uma foto. Dessa forma, Humberto Werneck, Pedro Vasquez, Moacyr Scliar, Arthur Nestrovski, Lilia Moritz Schwarcz, Reginaldo Prandi, Alberto Martins e Nina Horta apresentaram contos e ensaios bastante diferenciados, mostrando a foto como instrumento social e histórico, até a sua absorção e transmutação em um conto ficcional.

O primeiro texto do livro chama-se “É sempre feriado nacional…”, de Nina Horta. A autora usou o trabalho do fotógrafo Bob Wolfeson para desenvolver um conto cheio de elementos brasileiros e, claro, cobriu a narrativa de gastronomia e bom humor, assim como faz em suas crônicas para a Folha de São Paulo.  A foto de um gato em cima de um muro, que divide um campo de futebol com uma garagem, vira parte de um cenário de um bar, onde o proprietário, um velho magrelo, pigarreia e bebe. Certo dia, o bar ganha uma nova funcionária, que foi recém-demitida de um buffet. O conto se desenvolve mostrando a relação da funcionária com o velho. Outro autor que se aventura pela ficção é o Reginaldo Prandi, no conto narrado em primeira pessoa “Preconceito”. Aqui, ele usa a foto de José Medeiros, de uma mulata banhada em sangue e penas, em um culto de iniciação de filhas-de-santo.  É a menina da foto quem nos conta a história, que é uma espécie de relato sobre sua religião e as consequências que aquela foto geraram em sua vida.  Ambos os textos parecem ser um exercício de observação e adivinhação. Eu diria que a fotografia, nesse caso, tentou se estender. Os autores tentam recriar o que antecede e sucede na imagem que escolheram.

Saindo dos contos  para falar dos ensaios, Em Chão Sepulto, de Humberto Werneck, a história se constrói a partir da foto de um cemitério de Canoa Quebrada, tirada por Paulo Leite. No ensaio, o autor trabalha a temática da vida e da morte, da cultura nordestina, além de ressaltar a importância do fotojornalismo e como é necessário que o repórter e o fotógrafo consigam trabalhar bem em equipe (ele mesmo já trabalhou com Paulo Leite). O cemitério de Canoa Quebrada não tem muros e várias cruzes aparecem quase que soterradas  pela areia. Ali, vida e morte dividem a mesma terra e fazem parte uma da outra. Já Arthur Nestrovski usa uma mulata fotografada por Pierre Verger para debater o olhar estrangeiro sobre o Brasil (e não só olhar estrangeiro, mas também como nós nos vemos).

Já Moacyr Scliar narra a história de Chagas e Oswaldo Cruz, passando pela história da saúde pública brasileira. Outro autor que fala sobre ciência é Alberto Martins. Lilia Moritz Schwarcz prova que a corte brasileira se interessou, logo de início, pela fotografia.

Com tudo isso, Por trás daquela foto é um trabalho excepcional que consegue fazer um apanhado da fotografia em seus mais diversos aspectos e mostrar todos os detalhes que uma imagem pode apreender. O leitor se depara com ensaios que ressaltam informações históricas e culturais brasileiras, que se misturam às temáticas da música, política, ciência e religião, além disso, ainda tem a oportunidade de embarcar na ficção de autores como Nina Horta e Reginaldo Prandi que usaram a foto como ponto de partida para a construção de uma nova narrativa, infiltrar no relato pessoal do fotógrafo Pedro Vasquez, que é o único a ser o autor tanto do texto imagético quanto o do escrito, podendo assim dividir sutilezas que somente ele poderia saber.

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Título: Por trás daquela foto

Páginas: 184

Organização: Lilia Moritz Shwarcz e Thyago Nogueira