Antes de entrar na discussão de Páginas Sem Glória, livro mais recente do ficcionista brasileiro Sérgio Sant’Anna, lançado em dezembro de 2012 pela Companhia das Letras e formado por dois contos e uma novela, vamos falar um pouco sobre a obra-prima do pintor espanhol Diego Velásquez.
Pode ser que ainda não se tenha dito tudo o que é possível dizer sobre As Meninas– mas provavelmente já se disse tudo o que havia de relevante. Por isso, não passarei de uma breve descrição. Concluída em 1665, a célebre pintura estabeleceu um novo paradigma na história da arte ao trazer o processo de representação para dentro da própria obra. Nela, vemos em primeiro plano o artista (que parece nos encarar diretamente) e a tela na qual está trabalhando. Ao seu lado estão duas garotas e uma anã que têm o olhar fixado em algo à sua frente, como se observassem o espectador.
Seria um simples auto-retrato de artista, não fosse o detalhe crucial presente no fundo da composição: ali, um espelho situado na altura dos olhos de quem observa o trabalho reflete a imagem esfumaçada do casal real da Espanha – que são, ao mesmo tempo, os modelos do pintor, as pessoas para quem as meninas estão olhando e quem paga o salário de Velásquez.
Trata-se, portanto de uma inversão de pontos de vista – não é o retrato de alguém, mas o retrato do ato de retratar alguém. Declara-se a metalinguagem aberta ao público. De maneira mais abstrata, é um retrato do processo artístico. Quanto ao retrato de fato, o espectador nunca chega a vê-lo, senão por meio daquele reflexo distante e esmaecido.
Se evoco As Meninas para falar de Sérgio Sant’Anna, não é por mero preciosismo: uma reprodução da obra foi utilizada como contracapa de Um Crime Delicado, romance de sua autoria publicado em 1997 – e, vendo a freqüência com que obras de artes visuais se tornam protagonistas nas narrativas do escritor, é difícil acreditar que seja por acaso.
Talvez por isso, a pintura me veio à mente já nas primeiras páginas e me acompanhou durante toda a leitura de Entre as Linhas, que abre Páginas sem Glória. No conto, um narrador-escritor se apresenta em um único parágrafo. Ele está sentado em uma poltrona, diante de uma amiga que acabou de ler um de seus textos e está prestes a submetê-lo a uma análise crítica.
Daí em diante, a amiga assume a palavra e a narrativa transcorre até o fim do conto em forma de monólogo. Linha após linha, ela desfia observações que resgatam vestígios do dito texto (ao qual o leitor jamais tem acesso), comentando seus eventos de forma cronológica e permitindo, assim, uma ideia vaga de sua estrutura. Como a análise parte de uma ótica mais subjetiva do que acadêmica, revelam-se também alguns contornos da relação entre os dois interlocutores.
O leitor é impelido a reconstituir as lacunas deixadas tanto pela breve apresentação da trama quanto pela tensão sutil existente entre o narrador e sua amiga. No entanto, é impossível resgatar qualquer detalhe a partir do reflexo distante e esmaecido presente nos breves comentários, e é isso que permite o paralelo entre As Meninas e Entre as Linhas.
O segundo conto, O Milagre de Jesus, também transcorre como um quase-monólogo. O narrador, um mendigo chamado Jesus, alterna entre trechos cômicos e profundamente tristes. Ao entrar numa igreja, ele é confundido com Cristo por uma mulher com má-formação no corpo. Em um primeiro momento, alegra-se pela súbita importância atribuída a ele e se faz passar por uma aparição. Porém, após servir de ouvinte para o relato de violência extrema e desmedida do qual ela fora vítima, resolve desfazer o mal entendido, sem sucesso devido à recusa da mulher.
Tendo aconselhado-a com cautela, o mendigo está deixando a igreja quando é filmado sem autorização por um casal de jovens que está produzindo um filme experimental. Como condição para tomar parte nas gravações, ele exige um pagamento em dinheiro e uma boa refeição. Junto à abordagem veementemente crítica do conto, emerge uma questão recorrente na obra de Sant’Anna: a função prática da construção de narrativas, tanto no âmbito social quanto na vida interior de um indivíduo.
Muito embora suas primeiras frases não o sugiram (“Beleza pura também tem função? A arte deve ser aplicada?”), a novela que fecha o livro, Páginas sem Glória, assume um tom de leveza tanto formal quanto de conteúdo que contrasta com os textos que a antecedem.
Em estilo de crônica de jornal, ainda que de uma crônica de jornal primorosa, o narrador, que se confunde com o próprio Sant’Anna, resgata a saga do jogador de futebol (fictício) José Augusto, o Conde, e o contexto futebolístico do Rio de Janeiro na segunda metade dos anos 1950. Destacam-se as detalhadas descrições de partidas de futebol e corridas de turfe.
Mas, assim como em O Milagre de Jesus, o efeito pragmático das narrativas sobre a vida cotidiana vem à tona como uma reflexão crucial. A questão é simbolizada na forma como a cobertura da imprensa a respeito de um único lance de Conde em um jogo não muito importante acaba por afastá-lo definitivamente do futebol e condená-lo ao esquecimento. Um esquecimento que seria definitivo, não fosse a intervenção tardia (o tempo da narrativa situa-se em 2012) do narrador, que resgata o ocorrido em meio às suas memórias de infância – e é ele mesmo quem propõe a discussão acerca da importância de seu ato:
Mas a história dita menor, quem a documentará? Quanta coisa digna de registro não se carrega para o túmulo: imagens e sensações inesquecíveis, conhecimentos adquiridos depois da longa observação e aprendizado, grandes ideias, sentimentos fundos que nunca foram passados para o papel?
Ainda que estejam longe de ser inéditas na literatura, são perguntas contidas e muito bem situadas – como é tudo neste livro de Sérgio Sant’Anna, onde o conteúdo parece trabalhar, em última instância, sempre em função da forma. E talvez seja essa a característica que acaba por dar coesão a um livro constituído por três textos tão distintos: em todos eles, a narrativa ficcional é empregada como ferramenta para a discussão de sua própria constituição e relevância. Isso ocorre de maneira sutil, em contraponto à metalinguagem escrachada que tantas vezes consta da cartilha pós-modernista. Novamente, cabe mencionar, um tanto à moda de As Meninas.
Excelente resenha. Sóbria e argumentação bastante interessante. O paralelo com o quadro de Velasquez pode ser aplicado em quase toda a obra do Sant’Anna. Cada conto e novela dele trabalha com a questão da metalinguagem de uma forma bastante unica e perspicaz. O Sant’Anna nunca me decepcionou. Fiquei muito interessado em ler esse ultimo livro em particular.