Conhecia John Cheever da coletânea de contos organizada e prefaciada por Mario Sergio Conti, que saiu pela Companhia das Letras no ano passado. A elegância que havia notado nos contos (considerados a expressão máxima de sua obra) se mantém em A crônica dos Wapshot, um livro daqueles que não almejam ser um marco no cânone universal, mas que nem por isso se apresentam menos agradáveis de ler.

John Cheever é conhecido por dedicar sua literatura (ou ao menos boa parte dela) à famosa (e já quase lugar-comum) classe média norte-americana. Seus personagens são, em grande medida, representantes desse estrato que agrega tão díspares sujeitos sociais. Os elementos consequentes dessa temática são frequentemente a “vidinha” aparentemente confortável que acaba se mostrando claustrofóbica, as limitações espirituais, a mentalidade que as guia, as preocupações pecuniárias, enfim, seria uma espécie de “romance de costumes”, cujo possível paralelo talvez seja John Updike.

O livro em questão, o primeiro romance de Cheever, publicado em 1958, traça a história de uma família decadente da Nova Inglaterra na virada do século XIX para o XX, os Wapshot. A história se inicia com um belo clichê estadunidense (denotando uma certa ironia mordaz com relação a ele): o desfile de 4 de Julho. A cidadezinha onde moram os Wapshot, St. Botolphs, está em polvorosa por conta dos carros alegóricos, a fanfarra, as cores azul, vermelho e branco em profusão, as bombinhas e foguetes, etc., enquanto na parte traseira de um caminhão estão sentadas as senhoras pioneiras de St. Botolphs, entre as quais se encontra Honora Wapshot, a matriarca da família.

Os Wapshot são uma família tradicional que representam aquele retrato célebre de pioneiros estadunidenses, mas que vive em um contexto de profunda mudança, de modo que somente em locais como St. Botolphs sua posição (que pouco a pouco vai se tornando arcaica) se mantém com uma certa glória, ainda que decadente. A modernização da sociedade americana com a industrialização, a urbanização e a própria mudança de costumes que esses eventos acarretam, transforma os Wapshot cada vez mais em representantes de um passado que se tornava cada vez mais remoto.

Os personagens criados por Cheever conseguem evidenciar, de forma muitas vezes disfarçadamente melancólica, essa transformação. Leander, o patriarca, possui um barco que transporta passageiros, o S.S. Topaze, que vai perdendo fregueses e a própria capacidade de subsistir com seu trabalho. Os filhos de Leander e Sarah, Moses e Coverly, são obrigados a deixar St. Botolphs e seguirem para outros espaços para conseguirem caminhar com os próprios pés. Moses vai para Washington e Coverly para Nova York.

A jornada dos irmãos Wapshot se assemelha a de Eilis Lacey, de Brooklyn: buscando emprego, moradia, formas de sobrevivência, parceiros amorosos e adjacências. Cheever consegue traduzir com elegância e pitadas de humor certas inadaptabilidades dos dois, por conta de sua formação provinciana. São sintomas de mudança, o ritmo acelerado e desumano com que se movem as duas grandes cidades-destino dos Wapshot, por exemplo, em relação à cidadezinha em que moravam é uma mudança quase brutal.

Boa parte do livro se desenrola contando as peripécias dos dois buscando sobreviver, mas essas narrativas são entremeadas por comentários do próprio Leander e anotações de diários dos membros da família, já que manter diários é um dos costumes dos Wapshot. As anotações desses diários servem também de experimentação narrativa para Cheever, que ao invés de encadear fatos, coloca vários eventos ou elementos seguidos um do outro e separados por pontos, denotando que são meras observações do personagem.

A crônica dos Wapshot é um livro de estréia, ainda revelava certa timidez, embora lidar com essa imagem idealizada de tradicionalismo não fosse tão tranqüilo como parece ser (e como ainda deve ser hoje em dia, em alguma medida). Cheever construiu uma história que lida não só com as mudanças históricas e a percepção dos sujeitos em meio a elas, mas também sobre o rompimento da placenta provinciana que nos envolve e sobre como deixar a zona de conforto (a cidadezinha, o seio da família) é arriscar-se em vitórias e derrotas constantes.