Em “O lustre”, segundo romance de Clarice Lispector, nos é apresentado uma obra de extrema beleza. Não há, como em outros livros da autora, uma estrutura convencional. Parte-se daí o fato de que o enredo não possui definição clara – o que a escritora propõe com o texto é uma experiência de imersão no inconsciente, no ser dos personagens.

O romance é narrado em terceira pessoa, sendo o narrador onisciente. Durante todo o livro o foco prevalece sob a perspectiva de Virgínia, a protagonista. Acompanhamos seu amadurecimento, desde sua vida infantil na granja onde nasceu, até firmar-se, no presente da narrativa, na solidão da cidade. Essa apresentação se dá, porém, pela descrição do que cerca Virgínia, o que a influencia – tanto objetos, a exemplo do lustre do título, como pessoas próximas a ela, seu irmão que ela amava e seguia como a um líder etc.

Como dito, a falta de enredo é complementada pela percepção das personagens sobre o mundo em volta, suas sensações – o que confere ao livro sua fluidez característica, dando a noção de que os momentos descritos, sempre presenciados pelo interior de determinada personagem, estão carregados de certa força sufocante, momentos de iluminação, a existência explorada nos íntimos caminhos da memória – pois o que rege as páginas do romance é essa explosão de vida tão bem observada por Clarice.

O estilo de linguagem usado pela escritora é em si muito interessante – o texto flui, evoluindo gradualmente em complexidade, sem um ponto de descanso durante a narrativa, incansavelmente transmitindo pensamentos, revelações, relações intrínsecas. Assim, é notável a passagem do jantar em que Virgínia comparece, onde, ausente de tudo em volta, acha em si motivos de júbilo e prazer, como ao experimentar uma taça de licor de anis, sentindo o reconforto em si por degustar o sabor da bebida.

“Era licor de anis. O líquido grosso como algo morno […] Ainda o mesmo gosto prendendo-se à língua, à garganta como uma mancha, aquele gosto triste de incenso, alguém engolindo um pouco de enterro e de oração.”

É, portanto, essa força de percepção interior, a fluidez da linguagem, a sucessão de experiências íntimas, que torna o livro tão encantador, envolvendo-nos, mesclando sua força a cada olhar, respiração, cada avanço que damos – o que retorna nossa memória à luz transbordante d’O lustre.

Sobre o autor: Gabriel Cezar é um estudante do ensino médio com um futuro ainda incerto à frente. Adquiriu o prazer pela leitura tarde, no fim da infância. Porém depois não parou mais. Possui muitas manias literárias também, entre as quais se sobressai o prazer de sentir o cheiro das páginas de um livro.