Por Andre Aguiar (*)

Joel tem poucas lembranças da sua infância. A maioria é mediada por fotos e vídeos que os pais dele o mostraram – aconteceu porque há um registro. A memória de um adulto é uma apropriação do que contaram a ele sobre sua infância. Ele lembra do seu pai, Luiz, como alguém ora próximo, ora distante. Há uma fotografia para provar a amizade dos dois (pai e filho posando em frente a uma pirâmide em Cancún), mas a cabeça de Joel também guarda os momentos em que o pai ficou desconfiado da sua súbita aproximação do protestantismo.

Primeiro romance de Miguel Del Castillo, Cancún (Companhia das Letras, 2019) é uma história sobre a busca de um filho pelo pai. Passado em dois tempos e em dois lugares, o livro mostra um mesmo personagem em idades diferentes, olhando para esse relacionamento. Pré-adolescência e vida adulta, escritos de modo simultâneo pelo autor, um dos 30 melhores jovens escritores brasileiros eleitos pela britânica Granta, dono de uma prosa limpa, sem muitos rodeios ao refletir o que significa ser pai, ser filho e ser homem.

O filho

O pai de Joel viveu por 4 anos em Cancún e voltou ao Brasil quando ele era adolescente. Esse processo de recriar os laços de alguém que não esteve presente vai nortear os capítulos que se passam nos anos 1990. Há aqui um interesse no amadurecimento de menino, que se enxerga como adolescente, mas que não sente os sinais biológicos disso – não há pelos, tamanho, gozo. Sente-se pequeno, deslocado.

Joel liga a televisão e lá está o Massacre de Columbine e a queda do Edifício Palace II. A ideia de adolescentes sendo assassinados dentro do próprio colégio, a imagem de um grande prédio desabando, chocam o adolescente. Há um susto e uma constatação: algo ruim pode acontecer a qualquer momento. Essa sensação de que tudo – as relações, os cenários, as pessoas – podem ruir sem aviso norteia a ideia geral do livro. Uma sensação permanente de que tudo está por um fio.

Distante do “pai terreno”, Joel decide criar um outro laço de paternidade: se dirige ao céu, a um Deus Pai, que o toca profundamente. Quando descreve as cenas passadas numa igreja protestante, Del Castillo demonstra o quanto esses espaços podem ser abertos e acolhedores, mas também aponta o quanto provocam de culpa e censura. A religião é apresentada de forma ambígua, contraditória, como qualquer espaço humano.

Nesse momento, Luiz Afonso observa a movimentação do filho de longe, uma mistura de desinteresse com curiosidade. Há respeito às decisões do filho, apesar de uma discordância quase moral surgir daí. O pai gostaria que o filho experimentasse o prazer do mundo, enquanto um Deus Pai indica caminhos mais puros, para que o jovem não se perca.

O pai

Trinta anos depois, Joel espera o primeiro filho quando perde o pai. Entende que só se tornará um pai quando entender seu pai – então parte para Cancún para redescobrir a cidade que visitou na infância e procurar vestígios de quem foi Luiz ali. Parte desses capítulos são escritos no exterior, mas outra parte se passa no Rio de Janeiro – a escolha desses lugares não aconteceu aleatoriamente para o autor. Tanto a cidade mexicana quanto o bairro no Rio onde o personagem mora, a Barra da Tijuca, têm em comum hotéis e condomínios fechados, shoppings, pouco trânsito de pedestres, a praia. São lugares turísticos e artificiais, mas também podem revelar relacionamentos e afetos.

O mesmo movimento de Joel para o mundo, é exposto no relacionamento com o pai. Há uma constatação da complexidade presente em tudo. O amor de pai para filho é um jogo de luz e sombras, um movimento pendular, um vai-vem. Na infância, os pais como heróis; na adolescência a desconstrução dessa ideia. Na maturidade, uma reaproximação é possível, mas, no caso de Joel, não é possível. Del Castillo recria essa busca pela reaproximação num campo de emoções e ideias. Sua busca pelo pai acaba sendo uma busca por uma identidade própria.

Novas paternidades

Quanto mais se aproxima do pai, mais Joel entende que nunca poderá criar em sua cabeça uma imagem real do que o pai foi. Luiz nunca foi alguém aberto e o filho sabe pouquíssimo a respeito de sua infância, adolescência e vida de jovem adulto. Em dado momento, Joel entende que, apesar do conhecimento que tem do pai aumentar a conta-gotas ao longo de sua trajetória, haverá histórias que eles nunca contarão.

Sabemos pouco sobre nossos pais. Essas histórias deixadas para trás completariam o todo positiva ou negativamente? Essas lacunas são importantes para que nós os amemos? Um caminho que o romance indica é o da ambiguidade. Talvez a geração do autor esteja percebendo agora que essa ideia do pai super-herói, sempre firme e inabalável, é uma mentira que faz mal pra todo mundo – ilude tanto os homens quanto as crianças.

Para o autor, pai de duas crianças, o tempo é propício para repensar as formas de masculinidades e paternidades que produzimos, para pensar em como vamos contar nossas histórias e as histórias de nossos pais para nossos filhos, como vamos participar efetivamente na vida dos filhos, como vamos transmitir que ser homem não exclui sensibilidades e fragilidades. O livro vai deixando isso claro à medida em que cada capítulo vai espelhando de alguma forma os acontecimentos do outro sob um ponto de vista ou a partir de novos fatos conhecidos. A pré-adolescência dando pistas para Joel ser um adulto diferente, a vida adulta fornecendo os meios para compreender dúvidas do garoto.

No fundo, Cancún demonstra que essa é a condição de todos nós: podemos trair, burlar, esquecer, fugir, mas ainda assim teremos um enorme capacidade para amar.

FICHA TÉCNICA
Livro: Cancún
Autor: Miguel del Castillo
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168


(*) Andre Aguiar é jornalista, pesquisa literatura brasileira contemporânea e escreve sobre livros no @seispasseios.