Isaac Bashevis Singer nasceu em 1902, em uma vila próxima a Varsóvia, na Polônia. De família judaica, o autor, ao perceber o movimento crescente e truculento do nazismo na vizinha Alemanha, imigrou para os Estados Unidos em 1935, indo viver em Nova York, onde deu continuidade a carreira jornalística e o ofício de colunista, escrevendo para o jornal The Forward, todo redigido em Iídiche.

Singer escreveu praticamente toda a sua obra em iídiche, visto que era um grande entusiasta dessa língua e do movimento que se colocava junto com ela, que visava, na perspectiva de Singer, em manter um enraizamento na tradição judaica mesmo estando em diferentes comunidades ao redor do mundo.

A morte de Matusalém e outros contos, coletânea lançada recentemente pela Companhia das Letras naquela edição especial do Prêmio Nobel (em comemoração aos 25 anos da editora), reúne histórias espirituosas e inspiradas o suficiente para fazer qualquer um que as leia querer conhecer mais sobre o autor (eu mesmo já encomendei Diário de um não nascido e O amigo de Kafka).

Ao contrário de Kertész, por exemplo, que viveu os horrores dos campos de concentração e o Holocausto na sua hipertrofia macabra, Singer partiu da Polônia antes que as garras do anti-semitismo truculento pudessem deitar sobre ele fatalmente, embora Hitler já estivesse no poder e manobrando suas milícias no território polonês quanto o autor imigrou em 1935.

Não se deixe enganar pela possível aparência de superficialidade que o tom de conversa das histórias possui, há questões muito mais profundas pululando por debaixo das histórias. Singer cede espaço para que personagens da vida real contem suas histórias, de modo que o autor se alimente delas para mostrar as diferentes trajetórias de judeus e admiradores seus ao longo de seu cotidiano e de suas viagens. Esse recurso é, aliás, um dos grandes atrativos do livro, parece que você conversou com uma porção de pessoas, ouviu suas histórias, partilhou um pouco da vida de cada uma delas.

Contos como O amigo da casa, O recluso, A cilada, Uma vigia no portão entre outros, são belos exemplos de como da aparente banalidade surgem histórias comuns e ao mesmo tempo incomuns, que exploram tanto o judeu na sua condição de judeu quanto em sua faceta mais cotidiana, enquanto pessoa vivendo diariamente. Pode soar estranho um judeu escrevendo algo sem tocar diretamente na questão do Holocausto, que é o estigma opressivo sob o qual suas existências se desenrolam, mas Singer está longe de ser ingênuo, nas sutilezas é que sua crítica está aninhada.

Não são poucos também os contos que exploram as veleidades e absurdos do relacionamento amoroso, dos ciúmes, da fidelidade e do contrato conjugal. Aí o autor acaba se aproximando em alguma medida de Kundera, explorando justamente a “leveza” (usando o termo empregado pelo autor tcheco) com que as relações amorosas se desenrolam (ou se enrolam mais ainda).

A visceralidade e a veia apocalíptica de Kertész aparecem em lampejos breves, principalmente quando o autor explora a veia fantástica, como em O judeu da Babilônia e A morte de Matusalém (de longe o melhor conto do livro). Naquele, um judeu curandeiro/exorcista enfrenta um inimigo demoníaco muito forte que habita uma casa; e nesse, o atormentado e “novecentagenário” Matusalém vive o dilema quando Naamá, dona de seu desejo, lhe convida a gozar dos prazeres da carne na cidade governada por Satã, Asmodeu e Lilith, e construída por Caim. A eterna dualidade da natureza humana é mostrada aqui como a dificuldade (quiçá incapacidade) de compreender as provações e teleologia divina ao passo que as facilidades e confortos da carne são a própria expressão da provação. E da corrupção.

Explorando um “lado” não tão comum na literatura judaica, Singer nos mostra outros dilemas e propõe outras questões, frutos de outra experiência histórica que não os campos de concentração, mas que possuem lugar importante na literatura mundial, já que se mantém específicas em relação ao povo judeu, possuem, por outro lado, um apelo de indagação universal inegável.