Sentado de lado num banquinho de madeira, um pouco inclinado para frente, com duas canetas e um lápis no bolso de seu paletó, sustentava na mão esquerda um cigarro ainda aceso enquanto o chapéu pendia entre as pernas, mantido por alguns dedos de sua mão direita, deixando à mostra sua careca voluntária e (in)conformada, como era hábito de todo bom futurista russo.

No retrato feito por Aleksander Ródtchenko, em 1924, é essa a figura de Vladimir Maiakovski (1893-1930) que nos é revelada: um jovem artista austero que encarna o espírito impetuoso e renovador de seu tempo. “Preso ao papel com os pregos das palavras”, como ele mesmo sentenciou, é por trás das letras que se é possível admirar o retrato da poesia de Maiakovski, como vemos em Poética – Como Fazer Versos (Global Editora).

A despeito do título do livro, Maiakovski já destaca no primeiro capítulo, intitulado “Como fazer versos”, que o poeta que se nutre das fontes descobertas por outrem, bebe da água de seu próprio engano, uma vez que “poeta é justamente o homem que cria as regras poéticas”. Dessa maneira, a atividade de criação, poiese, é o primeiro obstáculo, mas também o primeiro presente acrescido à bagagem daquele que pretende trilhar os caminhos do “fazer poético”.

Em Poética  – Como fazer Versos, Maiakovski tece um elogio à liberdade, na medida em que propõe a atividade poética como a consolidação do exercício do livre-arbítrio, com o qual se constroem as bases de todo verso. No livro, o poeta irá explorar o tema pelo viés político que tange a problemática das liberdades individuais em contraste com a liberdade estatal de interferência nas esferas pública e privada.

Segundo ele, a poesia é um exercício da própria liberdade, já que, como dito anteriormente, poeta é justamente aquele que algemasse às próprias regras poéticas elaboradas ao longo da vida. Neste escrito Maiakovski defenderá a função social da arte como emancipação da condição miserável do ser humano, apoiando-se para isso no que considera fundamental, de acordo com o pensamento futurista, para que a arte poética não seja ecos do passado que não cessam de soar.

Através das cinzas da Revolução que acabara de acontecer na Rússia do séc. XX, a arte brotava imbuída de uma função social. A conjuntura política serviu para que os intelectuais russos do período se empenhassem em fazer da produção artística um elemento construtivo da reforma social.

Imbuído desse ideal, Maiakovski, no entanto, crê que de nada adianta ao artista seguir esses caminhos sem que haja uma pré-disposição para o trabalho árduo, disciplinado e engajado. Nesse sentido, desmistifica-se a figura do poeta boêmio, de tendências “aburguesadas”, do qual tratou boa parte dos romances do séc. XIX. De acordo com Maiakovski, a função do poeta não é limitada por quatros paredes ou pelas margens de uma folha, haja a vista que ela está intrinsecamente vinculada a uma finalidade social, que legitima a ação do poeta na sociedade. Por isso, o compositor de versos, no livro de Maiakovski, não será um sujeito supervalorizado pela adjetivação de suas qualidades, mas antes um personagem às intempéries das condições materiais e estruturais de seu período, integrado por defeitos e virtudes como qualquer outro mortal.

Além disso, o autor também considera que o trabalho do artista se inicia antes mesmo da tomada de consciência acerca do mandato social e de sua função artística na sociedade em que vive. A partir disso estabelece cinco “dados indispensáveis ao início do trabalho poético”.

Primeiramente, a gênese da obra poética acontece a partir da construção de “reservas poéticas”, quando o poeta trabalha para a coleta de elementos de sua realidade que traduzam os sentimentos de mundo vivenciados e sirvam como ferramenta para modelar as aparências das coisas, ao menos.

Agrupados tais elementos, o artista se encarrega de transcrevê-los da memória caótica física para a vegetal. O celulósico “bloco de notas” é a plataforma encarregada de conceder uniformidade e organização aos caos original; é a um só tempo local de sepultamento de versos e palavras incoerentes e o berço de novas formas poéticas, até então intraduzíveis e inefáveis.

Nessa etapa, em que a existência física do bloco de notas colide com a imaterialidade da palavra, a personalidade literária do compositor, com seus defeitos e virtudes, organizará os pensamentos em versos, caracterizando a produção com a individualidade e a originalidade próprias do estilo do compositor.

O cunho social e político que inspira o trabalho de Maiakovski, no entanto, não deve ser ignorado, como se nota, sobretudo, no capítulo “Os Operários e os Camponeses não vos Compreendem”. A crítica consiste, principalmente, no olhar vanguardista sobre os persistentes alicerces burocráticos do velho mundo naquela sociedade.

Espalhadas por toda a Europa, as vanguardas, como o Futurismo, compartilhavam entre si o objetivo de romper com o projeto artístico extensivamente saturado do séc. XIX, por meio da renovação dos modos de olhar e captar a realidade em sua constante transformação. Daí surgem os princípios que norteiam a produção artística do período: inovação, experimentação e criatividade, por exemplo.

A especificidade do Futurismo russo, grupo ao qual Maiakovski havia se filiado, está na essência política que caracteriza o trabalhador-artista e o produto de seu trabalho. A Rússia de então estava em pleno desenvolvimento tecnológico, com o avanço da industrialização e o crescimento das cidades e das massas populacionais urbanas.

É a essa Rússia que vislumbra o futuro, mas ainda continua às sombras, nutrida pelas migalhas do passado, que Maiakovski dirige sua produção artística intempestiva e inovadora. Poética – Como Fazer Versos, por isso, não é apenas uma investigação sobre a poiese de Maiakovski e de um grupo particular como os futuristas, mas um diálogo com passado, presente e futuro dada a interlocução da poesia, política e sociedade.

Se em vida essa foi a razão prática da existência do poeta futurista, a morte, ou antes, o suicídio, foi o atalho norteador da bala perdida lançada na geração do poeta para transpassar os corações do porvir. Afinal, para um artista sob intensas pressões e críticas do Estado russo, esta foi a maneira para Maiakovski superar o dizível e declarar que onde não há liberdade, nunca poderá existir Poesia.

Sobre o autor: Hugo Reis. Estudante do curso de Editoração da ECA-USP, aspirante a editor, evangélico e metido a escritor nas horas vagas. Sou tudo e nada ao mesmo tempo: sou a interrogação, o ponto de exclamação, as reticências… Assim, em minha constante inconstância, meu eu é reduzido a um vocativo ambulante apaixonado por Literatura e Música.