Sou fã de filmes de tribunal onde advogados se digladiam em retóricas empoladas, eloquências repletas de estratagemas e falas sistematicamente construídas para convencer qualquer um de alguma coisa. Tenho um pé atrás com o John Grisham, embora tenham me dito que ele é um dos expoentes da literatura de tribunal, seja lá o que isso quer dizer. Enfim, isso é só uma nota inicial antes de adentrarmos em Billy Budd, marinheiro, do autor estadunidense Herman Melville, que, a propósito, depois dessa novela (acho que dá para chamar assim) passou a ser um de meus autores prediletos.

Billy Budd, marinheiro ao que consta na assinatura presente na sua última página, foi concluído em 1891 (ano, inclusive, da morte do autor), mas é um dos escritos de Melville que só veio a ser publicado e amplamente conhecido postumamente, a partir de 1920, quando sua obra foi analisada com maior cuidado para além dos seus clássicos mais conhecidos. É um dos grandes exemplos de literatura curta, tal como Bartleby, o escriturário, do próprio Melville, ou A metamorfose, de Kafka, onde, apesar das poucas páginas, o conflito central consegue ser delineado com maestria.

Como já é bem sabido dos leitores de Melville, a experiência marítima marcou profundamente toda a vida e a obra do autor, e não é diferente em Billy Budd, marinheiro. Contudo, essa novela não pertence à fase mais aventuresca de Melville, onde romances como Mares do sul (1846) e Omoo (1847) foram publicados; mas sim ao período em que, colocando aventuras e desventuras em segundo plano, o autor passou a usar o mar e os navios como palcos de investigação mais profunda, sobre a moral e a natureza humanas em sua dualidade e como o campo de batalha entre o bem e o mal.

A história começa quando Billy Budd é transferido para um navio da Marinha Inglesa que conta com oficiais e marujos cujos escrúpulos são duvidosos. A lida marítima que Billy Budd, apesar de novato, dominava com maestria, é diferente da que está acostumado e, tendo em vista recentes eventos de motins e revoltas de marinheiros, o H.M.S. Indômito (navio em que a história se passa) encontra-se em estado de tensão, cada rusga ou possível atrito pode assumir proporções agigantadas nesse ambiente.

O conflito se dá quando Claggart, um oficial que não gosta de Billy Budd, calunia o rapaz, acusando-o de estar a planejar um levante. O capitão manda chamar o protagonista para que esse se explique e é aí que o problema começa. Apesar de ser conhecido como o “belo marinheiro” (uma espécie de arquétipo quase ideal), Billy Budd tem uma dificuldade: em situações de nervosismo ele é incapaz de articular palavras a não ser na cadência de gagueira. Essa incapacidade é usada por Claggart para reforçar sua acusação, ao passo que, exasperado, Billy Budd reage atingindo o oficial na cabeça e, não intencionalmente, matando-o.

Diante desse imbróglio, o Capitão é obrigado a convocar um tribunal de guerra para que o caso seja julgado. Nesse ponto, Melville já conseguiu organizar a cena para que o dilema moral se desenvolva com perfeição orquestrada.

Os fatos parecem desincumbir Billy Budd do crime, visto que não houve intenção de matar e, inclusive, pelo fato de se tratar de uma mentira de Claggart. Por outro lado, um homem, acidentalmente ou não, e independente de seu caráter, foi morto e não voltará à vida. Junte a essa situação conflituosa o medo de uma possível sublevação por parte de marinheiros que fossem porventura afetados por esse ato ou pelo desfecho do julgamento e eis que temos em mãos um belo exemplo de boa literatura.

Melville não chega a conclusões evidentes, nem a respostas fáceis; ele se preocupou em expor a impossibilidade de se estabelecer parâmetros universais sobre bem e mal ou certo e errado. Não há forma de condenar ou absolver Billy Budd sem entrar em choque com vários argumentos (bastante sólidos) em contrário. A subjetividade permeia cada ato humano, não há como criar padrões extra-humanos que se pretendam objetivos, justamente porque eles são impossíveis!

As referências às revoltas e a Revolução Francesa não são à toa, revelam as influências de Melville. Billy Budd é uma versão do “bom selvagem” de Rousseau que quando colocado em sociedade é corrompido ou ao menos tem seu caráter exposto a outros bem mais, digamos assim, hobbesianos.

Billy Budd, marinheiro é mais um daqueles livros que reforçam duas idéias que já expusemos aqui no blog: a) livros não precisa parar em pé sozinhos para serem bons; e b) bordejar é uma boa opção. Podem ter certeza de que se me pedirem sugestões de leitura, sobre o Melville ou não, indicarei esse livro.