Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira noite de campo, que fez minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca me esquecerei daquela fumaça.

Nunca me esquecerei dos rostos das crianças cujos corpos eu vi se transformarem em volutas sob um céu azul e mudo.

Nunca me esquecerei daquelas chamas que consumiram minha fé para sempre. Nunca me esquecerei daquele silêncio noturno que me privou por toda eternidade do desejo de viver.

Nunca me esquecerei daqueles momentos que assassinaram meu Deus, minha alma e meus sonhos, que se tornaram deserto.

Nunca me esquecerei daquilo, mesmo que eu seja condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.

E foi assim que o jovem Eliezer Wiesel, de Sighet- na Transilvânia, região na época disputada entre a Hungria e a Romênia-, com apenas 14 anos descreveu sua primeira noite após ter sido deportado, junto com sua família, de sua terra natal para um campo de concentração. E é sobre essa primeira última noite; e sobre todas as últimas noites que se seguiram até 11 de Abril de 1945, que seu livro A Noite trata.

Um clássico da literatura de testemunho e um dos relatos mais dolorosos sobre o destino dos judeus na Segunda Guerra Mundial, o livro narra como o laureado com o Nobel da Paz, Elie Wiesel, sobreviveu aos campos. Mas sua história não é uma história de sobrevivência, e sim uma narrativa pessoal sobre as muitas mortes que o autor sofreu nos campos.

No início do livro Eliezer é um jovem judeu bastante religioso, cujo maior sonho é tornar-se um Cabalista- e cuja maior decepção é o fato de não conhecer nenhum estudioso do misticismo judaico em sua cidade. Além disso, através de breves vislumbres, podemos ter uma noção de como era a vida dos judeus em Sighet, e de como a guerra parecia absurdamente distante deles em 1943.

Apesar dos inúmeros rumores sobre os feitos dos nazistas, tudo isso soava abstrato para aquela comunidade, tão distante da guerra como estava- a maioria das pessoas sequer acreditava nas histórias que ouviam sobre o que os nazistas faziam. Nem quando os fascistas húngaros tomaram o poder e permitiram a entrada das tropas alemãs no país, nem mesmo quando os judeus que não eram de origem húngara foram deportados eles acreditaram que tamanha loucura poderia acontecer em pleno século XX- os que conseguiram retornar para contar a história foram logo taxados como loucos.

Apesar de tentarem desacreditar seu destino até o último momento, a família Wiesel e seus vizinhos foram, por fim, mandados ao campo de Auschwitz-Birkenau. E foi ali que o jovem primogênito da família começou a morrer: foi separado de sua irmã e de sua mãe, para sempre.

A partir daí temos a terrível saga de Eliezer e seu pai, sendo transferidos de campo em campo e passando pelas mais diversas formas de horror que o calvário infligido aos judeus pelos hitleristas assumiu, até o fim da guerra e a libertação dos sobreviventes.

Wiesel nos traz essa narrativa de forma emocional, bastante pessoal. Furta-se à distância de um Kertész, por exemplo, e descreve os próprios sentimentos em profundidade. Podemos sentir a agonia da luta entre o desejo de uma morte rápida e a esperança de que logo a libertação chegará.

Mas talvez sejam dois os pontos mais contundentes dessa narrativa: o modo como o jovem piedoso que ambicionava ser cabalista vai, aos poucos, perdendo sua fé em Deus e tornando-se cada dia mais amargo, talvez mesmo cínico; e o modo como sua relação com seu pai desenvolve-se dentro dos campos, oscilando entre um amor desesperado e uma indiferença cruel.

A Noite é um dos mais importantes testemunhos sobre os campos de concentração. Wiesel é uma das vozes mais poderosas a narrar as infinitas dores de viver-se sempre a última noite em um mundo em que Deus foi enforcado em nome de conceitos tão pouco entendíveis como poder e pureza racial.

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