Há algum tempo arrisquei-me a fazer uma análise do filme Muito além do jardim (Being there, de 1971, dirigido pelo enigmático Hal Ashby) e, confesso, não gostei de relê-la depois de ter encarado o romance que deu origem ao filme, O videota (1970), do escritor estadunidense Jerzy Kosinski. Minhas conclusões não parecem se sustentar e principalmente a sequência final (que não revelo para não atropelar as coisas para quem ainda não viu o filme) me parece substancialmente diferente das minhas conclusões, ainda que ela não conste no livro.

O videota é um livro cadenciado em diálogos. Há poucos parágrafos de descrição ou em que o narrador encaminha a história com suas “próprias palavras”, o desenrolar da trama se dá em grande medida pelas conversas que os personagens mantém. Isso é um feito bastante interessante, visto que o protagonista de O videota nunca solta mais do que algumas frases esparsas e curtas.

Chance Gardiner morou durante toda a sua vida (ou pelo menos o que ele lembra dela, visto que ele possui uma boa porção de retardamento) na mansão do “velho”, onde era responsável pelos cuidados com o jardim. Quando seu patrão morre, ele descobre que seu nome nunca constou em lista alguma de empregados da mansão, ainda que os registros dos outros funcionários fossem bastante apurados. Diante dessa situação, Chance passa a vagar a esmo, até que sofre um leve acidente com um carro dirigido pelo motorista do financista e magnata Benjamim Rand.

O episódio resulta em uma estadia de Chance na mansão Rand como compensação, e rapidamente o velho jardineiro se integra ao cotidiano da casa, tanto no que tange ao doente e já quase moribundo Sr. Rand, quanto com a Sra. Rand, Elizabeth Eve (EE).

O que há de peculiar em Chance é o fato de que somado a sua condição mental deficitária, ele assiste televisão o tempo inteiro. Ao descrever as reações e o comportamento de Chance, Kosinski o faz através de comparações e referências televisivas. Todo o parco arsenal de conhecimento de mundo de Chance repousa em suas lembranças de telespectador, ou seja, ele não enxerga além do que a televisão pode lhe proporcionar, ele é quase alienado do mundo, a TV é o alfa e o ômega de sua capacidade de percepção.

O mais engraçado nesse ínterim é que essa condição de conceber a realidade em termos televisivos não o impede de se tornar gradativamente uma das pessoas mais influentes do mundo, sendo que seu nome é cotado para presidir altas cúpulas de associações de financistas, representações diplomáticas, fazer análises da conjuntura política e econômica, etc. Murmurando frases curtas e desprendidas de qualquer nexo com a conversa, Chance acaba por intimidar as pessoas, que mesmo sem o entenderem, simulam ter compreendido as “epifanias” concisas do protagonista. Nesse sentido a história se assemelha um pouco ao plot da fábula A roupa nova do imperador.

O romance de Kosinski é uma bela crítica a bestialização que muitas vezes é promovida pela televisão, não que ela seja essencialmente má ou boa (essa é uma discussão furada), mas não se pode perder de vista a força que ela possui na “sociedade do espetáculo”. A ironia do autor é refinada, embora levada às últimas consequências, e se estende para além do âmbito da TV, pois se uma realidade permite que uma pessoa como Chance, sem expressão e perdido na vacuidade do não-pensar-só-absorver, se torne tão influente, certamente Kosinski se dirigiu a ela de alguma forma. A ascensão de Chance, filhote da TV, aos mais altos cargos do país não é senão a coroação da ignorância, da superficialidade que é confundida com sabedoria por uma sociedade que não consegue romper a superfície de uma percepção estéril.

A comédia de O videota é um alarme, uma tentativa de expor o caráter imbecilizado que se tenta imputar a todos na realidade contemporânea e como a demarcação entre o que é ou não digno de ser considerado relevante . Não que essa característica seja absorvida passivamente por todos (longe disso, aliás), mas não se pode negar que tal intuito esteja presente em boa parte da programação.