Essa é a terceira e última parte das Lições Borgeanas de História e Historiografia. Se você perdeu as duas primeiras partes, pode encontrá-las aqui e aqui.
A lição presente se dá em torno do conto Funes, o Memorioso, que integra a segunda parte do livro Ficções, intitulada Artifícios. O conto em questão data de 1942 e conta a história de Irineu Funes, homem paralítico por conta de um acidente de cavalo, que era conhecido por alguns como “cronométrico Funes” em virtude de sua habilidade de saber as horas precisamente.
A condição peculiar de Funes, porém, não advém necessariamente da sua capacidade de se orientar horariamente, pois essa é somente um corolário de uma habilidade bem mais ampla e complexa: Funes lembra-se de tudo o que viu, ouviu ou sentiu de alguma forma. Ele é incapaz de esquecer qualquer coisa! Em sua memória jazem todos os fragmentos de realidade com que ele teve a oportunidade (ou o infortúnio) de se deparar.
A certa altura, o narrador do conto, intrigadíssimo pela inusitada condição de Funes, profere a seguinte frase (que dá conta de saber a extensão e o peso conseqüente da habilidade mnemônica de Funes):
“Não lhe custava [a Funes] compreender somente que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-se que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente).” (p. 124)
Ou seja, a memória de Funes estava tão afogada de fragmentos e percepções, lhe proporcionava tal quantidade de variáveis e de discrepâncias (por mínimas que fossem), que toda a tentativa de generalização era a ele a própria violação de sua forma de enxergar e conceber o mundo. O caos da realidade era inscrito tal e qual em sua mente, de modo que na sua mente permanecesse o próprio caos.
A prática historiográfica, ainda que apresentada de diversas formas de acordo com seu alinhamento ideológico, se caracteriza (bem como a outras áreas do saber) por buscar dar inteligibilidade a realidade. Dar inteligibilidade é interpretar, procurar padrões, repetições, diferenças, dissonâncias e ressonâncias; não de forma mecânica, mas compreendê-las em sua dinâmica social e dialética.
Se há semelhanças em determinados eventos ou práticas, existe ali algum significado social e historicamente construído que pode ser problematizado. Se há diferenças, da mesma forma. O denominador comum é o escopo de análise, que necessita de perspicácia, “golpe de vista” se quisermos usar as palavras de Carlo Ginzburg, para auferir, e então aferir e inferir em algo sui generis, que adquira uma significação maior a medida em que é reconhecido perante similares ou discrepantes em escala metodológica, semântica ou teórica (etc.), mas sempre humana, e, portanto, social e historicamente condicionada.
Dessa capacidade de comparar, estabelecer parâmetros e critérios (essa prática espinhosa e que necessita de tempo e esforço para amadurecer e ser refinada) que sirvam a produzir alguma explicação ou constatação mais ampla é que advém a capacidade interpretativa. É também justamente desse fato que surge a suspeita do narrador acerca das faculdades interpretativas de Funes:
“Suspeito, entretanto, que [Funes] não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores imediatos.” (p. 125)
Se fossemos querer colocar em termos mais recorrentes na historiografia, poderíamos dizer que Funes opera somente através da empiria, não possui um suporte teórico que lhe permita enxergar em escala mais ampla e, a partir desse comparativo de semelhanças e discrepâncias, trazer a tona uma interpretação.
O conto de Borges nos permite ainda auferir outra constatação bastante importante: para diversas pessoas (quiçá até mesmo no senso comum) a História é concebida como a memória de Funes. Sua função era, a exemplo do curioso personagem, recolher e colecionar essas informações para posterior satisfação de curiosidades que porventura aparecessem.
Não há quem discordar possa de que preservar informações acerca do passado é muito relevante, mas isso, de forma alguma, resume o modus operandi ou a função da História. Lembrar o passado sem ser capaz de integrá-lo ao presente para buscar intervir nele de alguma forma é tão paradoxalmente limitante como ter o potencial memorialístico de Funes: ter enciclopédias inteiras na cabeça mas não ser capaz de lê-las e menos ainda de extrair desse conhecimento algo mais do que sua própria reprodução.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
Que bacana, Lucas! Muito bem sacada essa analogia entre a visão do Fumes e a visão falsa do que seria historiografia. Não tinha parado para ver o conto dessa maneira, mas realmente o Borges conseguiu mais uma vez dar uma lição a partir da literatura, não só quanto à história, mas quanto à teoria do conhecimento como um todo. Lembrei de um texto de Popper, em que ele critica o indutivismo psicológico do Hume, onde há um exemplo semelhante, mas que, fui conferir, na verdade foi escrito 10 anos depois do conto! Quando abrir para discussões no fórum, coloco a citação.
Grande Gigio!
Aquela segunda citação que apontei é a que sintetiza todo o texto da coluna, eu acho. E o pior é que tem muita gente que ainda acredita nessa coisa de História é coisa do passado, coisas encerradas e mortas ou mesmo o mero colecionismo. Lembrar por lembrar torna a coisa morta mesmo. A História é mais do que isso, se trata de perceber o desenho do todo e, mesmo que através do presente, manter vistas no presente.
Se quiserem imputar esse caráter de colecionismo a História (coisa que muitas vezes transparece inclusive em apostilas e livros didáticos, infelizmente) é óbvio que ela continue não fazendo sentido para muita gente. Por isso é que às vezes não condeno alunos que não se interessam por alguns conteúdos de História…
E da-lhe Nietzsche e a Segunda Intempestiva! 🙂
Dá-lhe, dá-lhe!
A busca angustiante e nem sempre recompensadora é a mesma, Luara. A realidade é o próprio caos, porque se move a revelia de um significado interpretativo, embora ela tenha seus mecanismos obscuros pelos quais se move. É justamente desses que estamos a caça.
Fico pensando o que Nietzsche diria hoje…