Publicamos hoje três poemas inéditos de Natasha Tinet (1988), escritora e ilustradora. É integrante da grupa de escrita Membrana e coedita a Totem & Pagu firrrrma de poesia com a poeta Julia Raiz. Seu livro de estreia, Veludo violento, conquistou o 2º lugar no Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional 2019, na categoria poesia.


Quando eu era você

Me sigo pela casa com cuidado
não quero me assustar porque sou outra
agora,
enquanto você dança envolta em poeira solar
eu me escondo à sombra dos meus dedos tortos
uma aranha sobe a parede
mnemosyne, ela se chama
tem sujeira sob as patas e é lenta
como os passos de um inimigo perverso
ninguém se perde numa floresta sem motivo
ninguém guarda no livro uma flor
sem o desejo do eterno
me leve para outra dimensão
onde não exista o tempo
somente o cheiro das noites agrestes, do musgo
do sabão nos lençóis ainda úmidos
todo o seu pequeno mundo murmurando
uma sinfonia de árvores e solidões
segredos que crescem no interior de uma fruta
suculenta de futuro, eles não te ouvem
porque têm pressa e você nada fala
um elo foi quebrado e o que resta
é o significado da palavra hereditário
eu te persigo porque respiro conflitos e culpas
ainda encontros escorpiões no jardim e paraliso
enquanto constelações explodem meus pensamentos
me desculpe, há coisas que não entendo
quando eu era você como era o silêncio?


Mãe

A pele viscosa de marisco contra a correnteza
de umbigos, pernas ásperas, suores salobres
hálitos embriagados pela urgência de cervejas
mulheres de biquínis molhados sob as roupas
coçam discretamente suas virilhas e vulvas
sonham morar com vista pro mar, cooper toda a manhã
a maresia corroendo os eletrodomésticos seria a grande tragédia
do horário nobre, assim que o ônibus lotado desvia do cartão postal,
os intervalos comerciais as trazem à realidade, a cada curva
sua mão aperta meus dedos contra a barra de alumínio,
faço biquinho, peço socorro, quero voltar ao mar
onde me perco e me confundo com outros banhistas
e seus olhos anseiam por mim
ela me ama como perda,
não para de apertar minhas mãos entre as suas
mesmo em casa, quando me ensina a expulsar o sal da cabeça
esfregando shampoo de babosa debaixo do chuveiro, alguns fios
se despedem pelo ralo, não umedecerão o travesseiro, não
receberão o sermão: “não deite de cabelo molhado”.
ela me ama como doença crônica
ela me ama como peso de porta: eu
uma tartaruga marinha encalhada
engasgada com uma lista de compras.


A segunda ilha
                                                                        para Julia Raiz

Eu te desafio a roubar o corpo do cavalo marinho
com os dedos despidos dos anéis, a liberdade
derruba a taça de cristal sobre o granito
lapida pétalas de ausências.

Onde você esteve essa noite?

Urubus duvidam da sua capacidade de amar,
curvam-se gordos em tronos de galhos retorcidos.
O sangue veio antes, tão delicado quanto a pele
de um bebê morto com a qual você se delicia
com as patas besuntadas em óleo de rícino
os ratos marcham pelo forro da casa
sabem que são imortais, pois a assassina
está presa em um pesadelo, um filme violento
que se vê amarrada no assento da primeira fila.

não há nada que você possa fazer além
de acordar e incendiar ao sol, cantar
sempre a mesma música até que as sereias
enlouqueçam, caminhar no mar gelado
até a primeira ilha, a segunda não,
pelo amor de deus, ele diz sem saber
que sua poesia mora onde os azuis se tocam
muito além da segunda ilha
um garoto chamado Romeu descobre a melancolia
das raízes expostas ao tempo, observa a imensidão
a voracidade dos ossos que se expandem
durante o sono, as estrelas se advinham mortas
sonhamos com oráculos e nomeamos um falso futuro.

não quero guardar o grande segredo, eu preciso te dizer que
no dia em que o primeiro robô comer um hambúrguer
ele não te deixará roubar as batatas fritas
no dia em que o primeiro robô formular as perguntas certas
você as responderá como um vestido que se usa no dia errado.

O que está acontecendo com a gente é um pianista anônimo
tocando Erik Satie no saguão da rodoviária, enquanto
os viajantes checam seus tickets e ignoram
que há milhões de anos,
fomos batizadas com o magma da solidão
somos pequenas vulcões abissais,
nascidas no inconsciente dos deuses
jamais pertencidas a qualquer continente.