Após ter escrito A rua das ilusões perdidas, em 1945, retratando o cotidiano do bairro operário de Cannery Row, próximo de Pacific Grove, Steinbeck foi recebido com muita má vontade no lugar, pois alegavam que sua história mostrava uma Cannery Row que não existia de fato. Pessoas diziam-se ofendidas pelo fato de terem sido colocadas junto a uma descrição do bairro que o mostrasse mais como um reduto de pândegos e boêmios do que outra coisa.
Segundo a biografia do autor escrita por Jay Parini, Steinbeck ficou bastante triste e ressentido pela inesperada reação, pois Pacific Grove era um dos lugares em que ele mais gostava de estar e não ser bem recebido nesse lugar significava que o local que outrora ele chamara de lar não mais o possibilitava lá estar sem sentir-se constrangido de alguma forma.
Mesmo assim, depois de ter publicado sua segunda opus magnus, A leste do Éden, Steinbeck tomou coragem e resolveu revisitar Pacific Grove, Cannery Row e seus simpáticos personagens (ao contrário do pessoal de lá, não achei que o retrato desmerecia os moradores do lugar, mas eles deviam ter suas razões). Dessa volta a Cannery Row foi que surgiu Doce quinta-feira, romance publicado em 1954.
Doc havia partido para servir na Segunda Guerra Mundial e deixado seu laboratório marinho sob os cuidados do velho Jingleballicks. Quando Doc, agora protagonista incontestável do teatro de Cannery Row, retorna ao local e descobre que seu antigo laboratório encontra-se entregue às traças, ele desanima e começa a enfrentar uma espécie de crise de meia idade, embalada por uma indolência voluntária, proveniente de seu sentimento de inadequação pós-guerra.
Alguns dos personagens do romance de 1945 ainda viviam em Cannery Row, como Eddie e Mack, por exemplo; mas outros moradores, como Dora, do Bordel Bandeira do Urso, e Lee Chong, o chinês dono da mercearia, já haviam saído de cena, deixando Fauna e José Maria em seus lugares, respectivamente. Toda a população, novos e velhos, se compadecem de Doc e procuram ajudá-lo das mais diversas e cômicas formas.
A certa altura, Doc encontra filhotes de polvo numa visita à praia e se anima novamente, buscando preencher o vazio de sua vida com uma vontade quase obsessiva de completar um estudo que veio a sua cabeça e escrever um ensaio ousado que relaciona polvos e seres humanos de alguma maneira obscura. Os habitantes de Cannery Row consideram essa resolução danosa a Doc e resolvem ajudá-lo a constituir outro objetivo de vida.
Entre os novos personagens está Suzy, uma moçoila nada dócil que se integra à vida do bairro primeiramente através do bordel de Fauna. Acontece, porém, que um destino de redenção parece anunciar-se, visto que no plano de colocar Doc nos eixos novamente, ela deve desempenhar um papel central.
A cadência da vida em Cannery Row segue seu próprio tempo, calma e serenamente, e Steinbeck parece ter deixado de lado o receio de novas insatisfações, porque as descrições se desenrolam praticamente da mesma maneira. A imagem do bairro que nos fica é praticamente a mesma de outrora.
O que parece ter aumentado é a estima de todos por Doc, que, na minha opinião, é uma espécie de referência ao próprio autor, uma espécie de brincadeira do próprio Steinbeck. Essa é, todavia, somente uma hipótese, a qual não posso confirmar.
Se em A rua das ilusões perdidas o bairro parecia ser quase um personagem, dividindo a cena com Mack e os vagabundos em suas picarescas aventuras; em Doce quinta-feira o foco passa a ser a relação entre Doc e Suzy, com ênfase especial no primeiro. O estado de Doc e qualquer assunto que envolva ele passa a ser caso de preocupação pública. Para salvaguardar o bem estar de Doc vale qualquer negócio.
Doce quinta-feira está longe de ser um dos pontos altos da produção de Steinbeck, mas é uma boa opção de leitura leve e divertida, que explora a verve mais despretensiosa e humorada de Steinbeck, sem perder as suas marcas, como a reverência a simplicidade e colocar como heróis populares, pessoas que provavelmente estariam marginalizadas. A única recomendação é que A rua das ilusões perdidas seja encarada antes. Ou seja, é uma recomendação para aproveitar melhor a história, não uma obrigação.